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Coordenadora regional do Quilombo Campo Grande fala sobre ataques aos sem-terra

O jornal Gazeta Operária entrevistou a coordenadora regional do Assentamento Quilombo Campo Grande, Débora Vieira de Jesus Borges, sobre a tentativa de despejo de mais de 450 famílias que há 20 anos ocupam a usina falida de Ariadnópolis, em Campo do Meio (MG).

Jornal Gazeta Operária (JGO): Como surgiu e como se deu a formação do Assentamento Quilombo Campo Grande? 

Débora Borges: O assentamento surgiu em 1998 diante de uma necessidade social. Havia uma fazenda na região, que era usada para o trabalho escravo, e essa terra foi passando de mão em mão para o latifundiário e sua dívida foi aumentado cada vez mais. Por fim, na área funcionava a Usina Ariadnópolis, que acabou falindo em 1998. Como tinham muitas famílias que foram despedidas da antiga Usina e ficaram “ao léu”, sem ter como manter a sua produção, houve então a ocupação do MST naquela terra, porque ela estava abandonada. De 20 anos para cá, fomos mobilizando mais gente, tanto do município que trabalhava na usina, pessoas que viviam de arrendo, moravam de aluguel etc., quanto pessoas que vieram de forma espontânea, ao ficarem sabendo da ocupação e da possibilidade de conquistar aquela terra via governo, que na época ainda era o governo Lula. A partir de então houve uma mobilização cada vez mais intensa, famílias vindas do Brasil inteiro, que hoje somam mais de 450 famílias. 


Jornal Gazeta Operária (JGO): como vocês se organizam? A região é produtiva? Tem escolas funcionando?

Débora Borges: Hoje temos uma escola, ela é anexa, mas o projeto é que se torne uma escola independente, uma escola do campo, inclusive temos vários professores que estão se formando e se capacitando em educação no campo. Temos também uma cooperativa que é de café, ela abre mercado para outros produtos, mas é mais voltado para o café, porque a cultura de Campo do Meio é o café. E a marca é o Guaií, conhecida no Brasil e no mundo. Nós já exportamos centenas de quilos de café para Venezuela, Cuba e outros países. As famílias do Assentamento sobrevivem do café, do arroz, do feijão, dos cereais, do hortifrúti, verduras etc., tudo produzido e retirados de lá. Inclusive temos várias feiras na região, que é de sábado e domingo, 24 horas. Então assim, várias vezes na semana temos organicidade. Temos vários setores que têm atividade dentro da nossa área, que é o setor de educação, produção, frente de massa (que cuida das famílias que chegam, apoiam, trazem para dentro da terra etc.). Isso sem falar da formação. Temos vários cursos de Pronatec [Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego] que ensina aquelas pessoas que não têm mais o vínculo, que não sabiam lidar com a terra, a como se plantar a semente, como cuidar do meio-ambiente. Há também as várias capacitações que formam nosso povo à se reorganizar numa produção saudável. 
Temos toda a relação dos acampados, todos os documentos, inclusive porque há uma organicidade dos setores que acompanham essas pessoas, a exemplo do setor da educação, que acompanha os idosos, e o setor da saúde. Temos também um coletivo de mulheres, com mais de 50 mulheres, que produzem ervas medicinais num espaço que é totalmente orgânico. Não tem nada de veneno. A gente produz lá vários tipos de ervas medicinais, que é para tratar da nossa comunidade e para gerar renda às mulheres. Nós produzimos fitoterápicos, géis de massagem, xaropes, sabonetes, todo tipo de ervas medicinais. Conseguimos manipular para que o nosso povo consiga se tratar e que tenha um resultado extraordinário.


Jornal Gazeta Operária (JGO): O que motivou e como se deu o processo de reintegração de posse?

Débora Borges: Já houve vários processos de reintegração de posse, vários despejos. Contudo, quando Fernando Pimentel (PT), que é o atual governo de Minas Gerais, ganhou as eleições, ele deu um decreto estadual, em 2015, para que as famílias tivessem a posse daquelas terras. Com isso, foram se juntando os trâmites legais, os papéis para que as famílias conseguissem o pagamento. Entretanto, no ano passado, sofremos três anulações do Decreto, mas em todas elas nós ganhamos e conseguimos retomar nosso direito. Agora, há três meses, houve um imbróglio do judiciário junto com o representante da empresa, que é o laranja Giovani de Souza Morais, que diz ser dono das terras, trazendo uma Lei de 2011, afirmando que ele pode recuperar a empresa. Só que a empresa é totalmente falida. Já tem 20 anos que a região está sendo trabalhada pelas 450 famílias que têm lá.
Ou seja, na última semana, quando já tínhamos todos os trâmites legais para o governador depositar a primeira parcela do pagamento das terras, o Judiciário pediu o processo. Ao fazer isso, já na semana seguinte, o Giovanni entrou com o pedido de anulação do Decreto e ele foi anulado. Logo na sequência, ele entrou com um pedido de audiência de conciliação com os trabalhadores para ser feito um acordo, só que não houve conciliação. Houve a audiência.
Interessante que um dia antes da “conciliação”, no dia 6 de novembro, o juiz foi até o Assentamento para fazer uma visita. Ele passou na área e chegou a conversar com várias pessoas que estavam nas beiras das estradas, que se juntaram pela curiosidade de saber o que um juiz estava fazendo ali. Até então achávamos que ele ia lá para avaliar mesmo se havia produção, se  havia organicidade, se haviam famílias, escutar a nossa versão etc. Logo, esperávamos que ele desse uma posição na audiência que fosse real, mas ele simplesmente não deixou as partes da defesa, que são favoráveis a reforma agrária, falar. O juiz ouviu apenas a parte que é o latifundiário, que quer retomar aquela terra, e deu a sentença dele. Inclusive com muita ameaça, com a tropa de choque dentro da audiência, dentro do Fórum, para que calar a boca de quem estava lá para falar a verdade. Nós apresentamos todos os nossos processos, todos os documentos, todas as nossas provas, mas o juiz simplesmente folheou a papelada, como se folheia um livro para ver quantas páginas tem, a grossura do livro, e deu a sentença. Bateu a mão na mesa e disse que nós tínhamos sete dias para nos retirarmos daquelas terras, que não tínhamos nada naquelas terras.
Esta é uma situação bastante difícil para nós, que estamos lá há 20 anos, trabalhando de maneira honesta, produtiva. Só para se ter ideia, atualmente, temos 3900 hectares que são totalmente produtivos. Temos famílias que estão lá há 20 anos, que sobrevivem daquele café. Eu, por exemplo, estou lá há 12 anos.
Mas o fato é que não houve uma audiência de conciliação, não houve conciliação nenhuma. Talvez até pudesse ter uma conciliação da nossa parte, mas eles não abriram essa brecha. Simplesmente foram lá para dar essa cartada, como se já tivessem desenhado tudo. O juiz foi na nossa área para cumprir um mero protocolo. Foi isso o que aconteceu. 

Jornal Gazeta Operária (JGO): Vocês irão sair ou haverá resistência? 

Débora Borges: Estamos lá resistindo, até porque não temos onde colocar 450 famílias. Ao contrário da sociedade, do comerciante, dos professores, parte dos vereadores da Câmara que nos apoiam, não temos o apoio do prefeito. Por que? Porque quem financia a campanha deles são os latifundiários, então eles devem favor e não podem apoiar a reforma agrária lá no município. 
A situação é muito grave. Já recebemos, no último dia 20, uma carta precatória, que foi para a comarca de Campos Gerais, onde haverá uma audiência sobre como se dará o despejo. Não nos sentimos representados, nem na audiência de conciliação nós fomos representados, e agora menos ainda. O que nós vamos fazer é resistir. 
Estamos sofrendo ameaças 24 horas por dia, afirmando que a “tropa está chegando”, que vamos morrer, a militância vai morrer etc. Já sofremos vários ataques, inclusive já tivemos coordenadores que foram colocadas uma arma na cabeça, quase mortos, só não foram assassinados porque tinham várias testemunhas que apareceram na hora. Estamos lá para resistir, mas muito temerosos, porque tem muita criança, muito idoso, fora todo o tipo de produção que a gente tem. Hoje temos 330 postes de luz instalados entre as casas, casas de alvenaria, casas boas. As pessoas trouxeram e construíram com seu próprio dinheiro o sonho delas ali. Então, a gente quer que a sociedade nos apoie, que vá conhecer o nosso projeto. Eu tenho certeza que vai sair de lá encantado, porque a gente não está aqui fazendo um desenho de ilusão do que é o nosso projeto, estamos simplesmente falando da realidade que existe naquele município. 

 Jornal Gazeta Operária (JGO):  Você acredita que o Assentamento  Campo Grande está prestes a enfrentar um massacre?

Débora Borges: Olha, a gente ouve muitas ameaças, desde das que falam que tropa de choque está chegando, até as que garantem que as pessoas que estão querendo reivindicar essa terra, que é o Giovani, que ele tem muita articulação com a Polícia. Inclusive o juiz, ao sair da audiência do dia 7, fez questão de cumprimentar policial por policial, parabenizando pelo trabalho que tinha feito de manter a ameaça sobre as pessoas que estavam ali numa praça, que é pública, a todo instante falando que se nós passássemos da fita que eles tinham colocado lá, que eles tinham ordem para matar. Então estão colocando isso o tempo inteiro, que as tropas têm ordens para entrar e matar, inclusive o deputado estadual Antônio Carlos Arantes (PSDB), acabou de falar que no ano que vem, assim que eles ocuparem o espaço, que teremos um governo que não se coloca a favor da proposta de diálogo. A gente se sente o tempo todo ameaçado e é provável sim que haja um massacre naquelas terras.


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