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“Em um governo Bolsonaro, a situação da população e da cultura negra no Brasil, que já é bem delicada, se deteriorará ainda mais”.

O Jornal Gazeta Operária (JGO) entrevistou o estudante de doutorado em História da África, Felipe Malacco, sobre como um eventual governo de Jair Bolsonaro poderia afetar a expansão dessa área do conhecimento no Brasil, bem como qual seria os efeitos de um eventual governo fascista para o povo e a cultura afro-brasileira.

JGO - Qual a importância, para você, do ensino de história da África e dos afro-brasileiros no Brasil?

F. Malacco - A obrigatoriedade do ensino de história da África e dos afro-brasileiros no Brasil foi instituída pela lei 10.639/2003 no Brasil e ampliada ao ensino de história das populações indígenas com a lei 11.645/2008. Essas duas leis foram duas grandes conquistas dos movimentos sociais, especialmente do movimento negro, levadas adiante no governo Lula. Dado os horrores da escravidão atlântica, o Brasil é o país com maior população negra fora da África e, mesmo contando os países africanos, em números absolutos, é o segundo país com mais negros no mundo. Até a lei de 2003, os negros só apareciam na história como frutos do tráfico maldito, sem nenhuma preocupação com o que acontecia antes dessas pessoas serem embarcadas nos navios negreiros. Sem nenhum exagero, o escravizado trasladado para o Brasil, parecia ter nascido dentro do navio. Isso, em primeiro lugar, advinha da lógica imperialista do ensino de história no Brasil. Aprendíamos tudo sobre a Europa e os Estados Unidos, relegando ao esquecimento o continente que mais gerou habitantes para a atual população brasileira. Mesmo com limitações, com a lei, grandes avanços foram feitos. A disciplina de História da África se tornou obrigatória na maior parte das licenciaturas em história no Brasil e novos pesquisadores passaram a se debruçar sobre essa questão, em cursos de mestrado e doutorado. O conhecimento nessa área ajuda a desmitificar sensos comuns depreciativos, como o fato de a África ter sido tecnologicamente pouco produtiva para a humanidade, que os africanos sempre foram sujeitos passivos na história e que o continente, por não ter desenvolvido uma linguagem escrita própria, não possuía história.

JGO - Como uma eventual eleição de Jair Bolsonaro pode afetar essa parte da educação brasileira?


F. Malacco - Jair Bolsonaro nunca se furtou a expor seu racismo abertamente. Seu plano para as universidades públicas é um projeto privatista sem nenhum pudor. Especificamente para a área de humanidades, em seu projeto de governo, não há nenhuma perspectiva de ampliação ou mesmo de manutenção dos investimentos já existentes. Completamente focado em uma parte mecânica, tecnicista, Bolsonaro deixa claro que não tem nenhuma intenção de propagar o censo crítico através do conhecimento das ciência humanas, como é típico de governos fascistas. Não por acaso, o candidato se posiciona abertamente a favor da reforma do ensino médio, em que história, sociologia, geografia e filosofia deixarão de ser parte da grade curricular obrigatória. E, nesse caso, um campo de pesquisa aberto tão recentemente, como o de História da África, que ainda não é consolidado, sairia ainda mais prejudicado. O campo, que ainda está em pleno desenvolvimento, seria cortado ainda em seu nascedouro, e grande parte do que está sendo debatido se perderia.

JGO - A população negra, seja no genocídio ao povo negro, seja na perseguição às religiões afro-brasileiras é duramente atacada no Brasil. Como essa situação poderia se deteriorar caso Bolsonaro seja eleito presidente?


F. Malacco - Como disse, Bolsonaro é um racista descarado. Dentre suas falas mais “memoráveis”, se encontra a que ele compara líderes quilombolas a gado, a serem pesados na arroba e falar que filho seu não namoraria mulheres negras, por ser bem educado. Ao dizer isso, fica bem explícito porque o ex-dirigente da Ku Klux Klan declarou abertamente que Jair Bolsonaro poderia muito bem ser um militante de sua organização. Ao afirmar, inúmeras vezes, que em um governo seu a polícia teria licença para matar primeiro e perguntar depois, me parece bem óbvio quem irá sofrer com tal perseguição. Segundo o atlas da violência do ano passado, de cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 eram negras. De acordo com o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, das mortes cometidas por polícias entre 2015 e 2016, foram mortas 3240 pessoas negras contra 963 pessoas brancas. Quem foi confundido como meliante em potencial pela polícia do Rio de Janeiro este ano, quando pacificamente ia para a escola, foi um adolescente negro. Foi ainda neste ano que um garçom que portava um guarda-chuva foi “confundido” com alguém que portava um fuzil e foi friamente assassinado por policiais. Isso fora o grande número de mortes em áreas marginalizadas que ficam sem solução. Isso ocorre por causa do racismo estrutural existente na sociedade brasileira, em que a população é treinada desde a infância a reconhecer pessoas negras como potencial perigo.

Com relação às religiões afro-brasileiras, Bolsonaro tem se filiado cada vez mais à chamada Bancada Evangélica. Até se converter ao neopentecostalismo o candidato se converteu. Ao se filiar a pessoas como Marco Feliciano, que já afirmou que os negros são uma raça amaldiçoada por Deus e à religiosidade cujos adeptos mais perseguem as religiões africanas no Brasil, Bolsonaro certamente fará vistas grossas à perseguição religiosa que, com certeza, se aprofundará em um governo fascista. O fascismo não tolera diversidade de pensamento, não tolera diversidade de crenças. Com certeza, em um governo Bolsonaro, a situação da população e da cultura negra no Brasil, que já é bem delicada, se deteriorará ainda mais.

JGO - As relações entre Brasil e África estiveram na ordem do dia durante os governos anteriores. Como ficaria essa situação em caso da eleição do fascista?


F. Malacco - Nos governos petistas houve uma intensa busca por novas parcerias político-econômicas em âmbito global, como forma de sair da égide de uma relação imperialista com os Estados Unidos. O BRIC’s, bloco econômico que interligava países como China, Rússia, Índia, África do Sul e Brasil, foi muito fortalecido. Além disso, o país caminhava para uma aproximação cada vez maior com países africanos de língua portuguesa, como Angola, Moçambique e Cabo Verde. Era comum vermos nos campus das universidades federais, estudantes de intercâmbio provenientes dessas nações e também de outras, como Senegal e Nigéria. Já no governo golpista de Michel Temer esse número caiu a olhos nus. Em um eventual governo de Jair Bolsonaro, essas parcerias serão completamente abandonadas. Fica muito claro na parte econômica de seu plano de governo, feita por Paulo Guedes, que a ordem do dia será ampliar laços com países imperialistas da Europa, Estados Unidos e, pasme, Israel. A cooperação sul-sul, que poderia sim ser uma real iniciativa de resistência ao imperialismo, será completamente abandonada. Bolsonaro representará os interesses do capital financeiro estadunidense no Brasil e nada mais que isso.


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