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Vale e o imperativo do capitalismo

Por Vladimir Serge

No último dia 25 de janeiro, uma barragem da mineradora Vale estourou em Brumadinho (MG), devastando a região e matando mais de 100 pessoas. Isto se segue ao desastre de 5 de novembro de 2015, em Mariana (MG), quando uma barragem da mineradora Samarco (também Vale) rompeu e arrasou a região. Sem dúvida, o choque foi generalizado diante das notícias horríveis que se seguiram a este novo desastre. Contudo, será que alguém ficou genuinamente surpreso?

Os horrores causados por companhias privadas já são lugar-comum na nossa imaginação. As narrativas do cinema, um dos lugares de mais ampla divulgação da ideologia capitalista e neoliberal que rege o mundo atualmente, nos dá um panorama inicial. Quantos filmes não têm como vilão o empresário ganancioso que se dispõe a destruir tudo em busca de lucros cada vez maiores? Incontáveis, certamente. Tal constatação aparece, num primeiro momento, como contraditório com a ideologia capitalista, que apresenta o livre-mercado e a propriedade privada como o modo infalível de gerenciar tudo no mundo. Na realidade, a ideologia e o sistema capitalista têm conhecimento, ainda que por vezes inconsciente, de que as empresas “nem sempre” tomam “atitudes louváveis”, que cometem atos ilegais ou destrutivos em busca de margens de lucro cada vez maiores. Nestes casos, a “justificativa” apresentada seria um mero problema de administração: existem empresas “ruins” ou empresários e diretores “gananciosos”, que abusariam de um sistema supostamente perfeito. Contra isso não haveria nada a ser feito, exceto lamentar eventuais “acidentes”. O caso da Vale, portanto, seria culpa de alguns diretores, no máximo de algumas práticas condenáveis realizadas na Empresa, como possíveis subornos de fiscais, má manutenção de represas etc., mas, no geral, a mineração em si não seria perigosa.

Isso, obviamente, não passa de asneiras. Não faz sentido distinguir empresas em “boas” ou “ruins”, empresários em “humildes” ou “gananciosos”. A maneira como o sistema é estruturado torna esse tipo de categorização irrelevante. Um empresário que queira “fazer a diferença no mundo”, pagar seus funcionários de forma justa, cuidar do meio-ambiente etc., ficará sujeito às pressões do mercado e dos acionistas tanto quanto qualquer outro. Pagar bem os trabalhadores é, dentro de um sistema capitalista globalizado, optar por aumentar o preço de seu produto ou diminuir sua margem de lucro. Nenhuma das duas opções é particularmente “tranquila” e uma empresa que, realizando esse tipo de ação, iria perder a “competitividade”, estaria ameaçada a ser comprada por uma companhia maior e mais poderosa, gerida por quem não se importa em escravizar trabalhadores, ou por aqueles que, ao invés de tratar os dejetos industriais, simplesmente os deposita em um rio etc.

O famoso “incentivo” que o lucro ofereceria, do qual os economistas burgueses tanto falam, longe de ser um estímulo à “inovação”, é, na realidade, mas uma forma de reduzir custos a qualquer preço. Vai poluir o rio? Não importa, quem irá lidar com isso é o governo local, não a empresa. Os trabalhadores não têm dinheiro para viver com os salários miseráveis que são pagos? Que procurem outro emprego (algo que, em condições de recessão como a que vivemos, é absurdo e impensável). Ou seja, tudo aquilo que uma empresa puder ignorar como sua responsabilidade ela irá fazer (a menos que os custos de uma má imagem possa sair mais caro do que de fato tomar atitudes decentes, o que é incomum).

Não é segredo que há pouco mais de 20 anos a Vale era uma empresa estatal. Empresas estatais têm uma vantagem clara em relação a empresas privadas, do ponto de vista dos interesses da população: seu objetivo principal não é gerar lucro (não que elas não gerem lucro, longe disso), mas prestar um serviço visando o bem-estar social. O mais importante para uma empresa estatal é criar e manter uma grande quantidade de empregos e, ao mesmo tempo, realizar um investimento crucial em setores da economia que talvez não seja, à primeira vista, interessante para a iniciativa privada.

A Vale foi vendida pelo governo FHC, em 1997, a preço de banana, em um leilão que não levou em conta o potencial produtivo da Empresa. O valor “cobrado” foi R$ 3,3 bilhões, quando, na verdade, somente as reservas minerais da Estatal eram calculadas em mais de R$ 100 bilhões. A então Vale do Rio Doce era lucrativa e, não por acaso, depois de sua privatização, o lucro gerado superou muitas vezes o valor que foi pago por ela. A venda da Vale foi uma traição de um governo de direita, um ataque contra o povo brasileiro para beneficiar o capital internacional, garantindo a posição submissa do Brasil e a perda de imensos recursos que o governo poderia ter usado para, por exemplo, construir infraestrutura ou investir em saúde e educação.

Não nos enganemos: não é coincidência que este crime impagável ocorreu depois que a Vale foi privatizada. O sistema do capitalismo internacional não se importa com os trabalhadores e moradores que morreram no acidente, com os rios que foram destruídos ou com as propriedades que foram arrasadas; a Vale, naturalmente, não se importa também. Lutemos então para a nacionalização das empresas e das indústrias brasileiras, sobretudo as essenciais, porque se deixarmos nas mãos da iniciativa privada é possível, e provável, que Brumadinho não seja a última cidade de Minas Gerais a sofrer tamanho desastre.


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