Marshae Jones, uma americana de 27 anos, do estado do Alabama (Estados Unidos), estava grávida de cinco meses quando sofreu um aborto espontâneo, em dezembro do ano passado, após ter sido baleada, com cinco tiros na barriga, durante uma discussão a respeito do pai da criança. O que, a princípio, parecia um caso chocante, mas de fácil desfecho, tomou proporções assustadoras quando, no último dia 24 de junho, a vítima, após ser levada a júri popular, foi indiciada por homicídio culposo, enquanto a autora dos disparos, Ebony Jemison, de 23 anos, foi inocentada.
Jones foi presa no último dia 26 de junho, com fiança estipulada em 50 mil dólares (mais de R$ 190 mil), acusada de ser a responsável pela morte do feto, pois foi ela quem teria começado a discussão que levou a agressora a realizar os disparos com uma arma de fogo. Nas palavras do tenente de polícia responsável pelo caso, Danny Reid, "a investigação mostrou que a única vítima verdadeira nisso era o feto", como se a mulher que foi baleada não tivesse sido ferida, e que "quando uma mulher grávida de cinco meses inicia uma briga e ataca outra pessoa, eu acredito que ela tenha alguma responsabilidade caso o feto se machuque de alguma forma". Mais uma vez temos um exemplo clássico da prática criminosa de culpar a vítima pela sua condição de mulher.
Como não poderia ser diferente, a decisão causou indignação em todo o mundo, mas, por mais assustador que possa ser, este não é um caso isolado e atípico. Diversas organizações “pró-escolha” vêm denunciando, há meses, como os direitos das mulheres estão sendo ameaçados no conservador estado do Alabama. De acordo com a diretora do Fundo Yellowhammer, uma organização da Rede Nacional de Fundos de Aborto, Amanda Reyes, “o Alabama demonstrou uma vez mais que, no momento em que uma pessoa engravida, sua única responsabilidade é produzir um bebê vivo e saudável, e que qualquer ação que faça que possa impedir esse nascimento é um ato criminoso”.
A “onda” conservadora que se vê no Alabama é um fato que vem se espelhando em todo o mundo. Segundo o portal de notícias G1, apenas neste ano, mais de 250 projetos de lei restringindo o aborto foram propostos em 41 estados americanos. Destes, oito estados (Alabama, Geórgia, Kentucky, Mississippi e Ohio, Missouri, Arkansas e Utah) aprovaram leis que vetam ou restringem o acesso ao procedimento. No caso do Alabama, foi aprovada, em maio deste ano, uma nova política que reduz o direito ao aborto ao mínimo absoluto: os médicos só podem praticar uma intervenção quando a vida da mãe estiver em perigo, sem exceções nem mesmo para os casos de incesto (relações sexuais entre membros de uma família, pai e filha, por exemplo) ou estupro, e equipara a interrupção da gravidez a homicídio.
Brasil na mira dos conservadores
No Brasil a situação não é diferente. O exemplo disto é Estatuto do Nascituro, que privilegia os direitos do feto desde o momento da concepção e torna o aborto um crime hediondo, e a PEC 181/2015, que inicialmente visava ampliar a licença maternidade em casos de nascimentos prematuros, mas que acabou sofrendo alterações em 2017 e, se aprovada, poderá vetar o aborto em qualquer caso, inclusive nos já previstos por lei (estupro, anencefalia do feto ou gravidez com risco de morte para a mãe). Tais medidas colocarão o Brasil na mesma situação vivida nos EUA – não faltarão Marshae Jones no nosso País.
Com o avanço da direita conservadora, ações para oprimir ainda mais as mulheres ocupam lugar de destaque. A questão do aborto é fundamental nesse sentido. As mulheres passam a ser responsabilizadas por absolutamente tudo, tratadas apenas como uma espécie de “incubadoras naturais”, incapazes de opinar sobre o seu corpo. Quando engravidam, são as únicas “culpadas” – o homem nunca é responsabilizado por uma gravidez “indesejada”, mesmo a concepção não sendo possível apenas com a participação feminina. Isso sem falar que mesmo o Estado capitalista obrigando a manutenção dessa gestação, ele não se responsabiliza pelo mínimo para que essas mães consigam criar bem seus filhos – não há creches, escola de tempo integral, saúde pública, lavanderias públicas etc. A mulher é a única responsável pela criação, educação e bem-estar dos filhos, podendo o homem abandonar as crianças em qualquer momento, sem que haja qualquer “punição”.
Casos como o do Alabama, onde a mulher é culpabilizada até mesmo quando sofre agressões, é reflexo da política de opressão dessa significativa parcela da população trabalhadora, uma forma de manter a mulher submissa. Assim como no caso de Jones, que foi responsabilizada pelo aborto espontâneo, por ter iniciado uma discussão com a agressora, outras mulheres poderão ser culpabilizadas por agressões provenientes de discussões com seus companheiros, inclusive se eles fizerem uso de arma de fogo, atentando não só contra o feto, mas contra a vida da mulher. Não podemos esquecer que, recentemente, o presidente liberou o porte de armas.
Também não é coincidência que as mulheres pobres e, principalmente, negras são as mais atacadas com essas medidas repressivas. Segundo o estudo “Pesquisa sobre aborto no Brasil: avanços e desafios para o campo da saúde coletiva”, de Greice Menezes e Estela Aquino, de 2009, o perfil das mulheres brasileiras que morrem em decorrência do aborto é de jovens, negras, de estratos sociais menos privilegiados e residem em áreas periféricas das cidades. No que diz respeito à violência doméstica não é diferente. O Mapa da Violência de 2015 revelou que o número de homicídios de brancas caiu, já o assassinato de negras aumentou: em 2003, o índice de negras assassinadas foi 23% mais do que as brancas. Os números foram crescendo lentamente ao longo dos anos, para, em 2013, chegar a 67%. Tais dados comprovam que ao aprovar leis que restringem ou retiram ainda mais os direitos das mulheres, a direita ataca, principalmente, as mulheres pobres e negras, para mantê-las impotentes, aterrorizadas e submissas, incapazes de lutar por sua emancipação. Diante do avanço da direita conservadora e com ele, os ataques cada vez mais ferozes contra as mulheres, é necessário uma luta firme de todos os setores oprimidos e marginalizados da sociedade.