• Entrar
logo

A dialética da elitização dos estádios

Por Armando Rix

15 de abril de 1989 foi a data em que jogaram pela semifinal da Copa da Inglaterra as tradicionais equipes do Liverpool e Nottingham Forest. Porém, a data ficou marcada para a história do futebol inglês, como o dia em que 96 vidas se perderam entre o alambrado e o gramado do importante estádio de Hillsborough, em Sheffield. Já para o futebol mundial, de certa forma, as consequências dessa tragédia se tornaram símbolo de uma tendência global que se formalizou no modo em como pensar e gerir as atividades ligadas ao futebol, ou seja, a maior mercantilização do esporte ligada à uma potencialização do capitalismo e de uma crescente prática em vários países de políticas de cunho neoliberal. Ao fim, tudo isso atrela-se à um fenômeno complexo que afeta hoje social, política e culturalmente um dos personagens mais relevantes do futebol: a torcida, que se tornou alvo de  restrições e imposições diretas e indiretas,  colocadas sob a bandeira da elitização do futebol, principalmente no espaço dos estádios – agora, chamados de “arenas” – e na relação do clube e do torcedor.

Não é um fato isolado que essas mudanças no mundo do futebol ocorreram a partir dos anos 80. O futebol foi somente mais um dos espaços atingidos pela emergência das políticas neoliberais aplicadas em diversos países, em que uma desregulamentação e flexibilização maior do mercado financeiro exacerbou os efeitos do capitalismo na vida do trabalhador e aumentou extremamente a desigualdade social. A partir desse período, em época diferentes e com especificidades próprias de cada território, a planilha neoliberal passou a ditar as principais decisões e ações de distintas linhas de governo, mesmo aquelas que aparentemente possuíam uma ideologia contrária, mas que não hesitaram em aprovar projetos e leis que prejudicaram de forma direta a classe trabalhadora. Sem dúvidas, Margaret Thatcher é um dos grandes símbolos de todo esse processo, o que explica a introdução desse texto citando o episódio em Hillsborough. Primeira ministra no período entre 1979 e 1990, ideológica e politicamente seguidora estrita da cartilha neoliberal, Thatcher foi grande inimiga dos trabalhadores empreendendo, por exemplo, uma luta pela desmobilização sindical. É justamente nesse ponto que se pode contextualizar a tragédia de 1989.

Tragédia não, um crime. Um relatório publicado em 2012, revisou os eventos desse dia fatídico e mostrou que a culpa pelo desastre, que durante mais de vinte anos foi colocada nas costas das próprias vítimas, tratou-se, na verdade, de uma negligência intencional das autoridades. Porém, a retórica de culpabilizar a torcida do Liverpool, formada em grande parte por trabalhadores e operários participativos de sindicatos como também outras torcidas – o fenômeno complexo do hooliganismo – se cristalizou e as torcidas foram responsabilizadas, não somente pela violência daquele dia, mas por uma suposta barbárie que não poderia mais ser suportada no futebol.. Era preciso mudar, afirmava a Dama de Ferro, a principal estimuladora e difusora desse discurso, cujas mudanças seguiriam os novos rumos que tomavam a política e a sociedade do período, melhor dizendo, políticas neoliberais condizentes com a lógica do capitalismo financeiro e mercadológico. Assim, privatizações de estádios, formação de clube empresas, encarecimento dos ingressos e a exclusão da classe trabalhadora dos campos tornaram-se, no país, uma realidade que perdura até hoje e que diversos países tentariam realizar nos  anos seguintes, inclusive o Brasil.

 

A elitização da arquibancada no Brasil

 

Todo o processo de elitização do futebol ocorreu e ocorre de maneira particular em cada país, em conflitos com as características políticas, sociais e culturais do território. Nesse sentido, se a formação de clubes empresas no Brasil aparentemente é travada por diversas questões burocráticas e por pressão política  vinda de diversos setores do futebol com objetivos diferentes – dirigentes, conselheiros e membros de torcida -, outros projetos de elitização se tornam uma realidade e prejudicam de forma direta a maior parcela de torcedores aficionados pelo esporte. Assim, as novas arenas com seus ingressos absurdamente caros excluem as camadas populares, como demonstram os dados alarmantes feitos pela Pluri Consultoria. Observa-se no estudo realizado por esta instituição um aumento de 300% do valor médio dos ingressos entre 2003-2013, enquanto a inflação variou neste período 73% e o salário mínimo subiu 183%, mostrando uma desproporcionalidade excludente para com aqueles das classes mais baixas da sociedade brasileira. Esse aumento relevante certamente tem como um dos catalisadores os megaeventos que o Brasil decidiu sediar nestes últimos anos – a Copa das Confederações em 2013, a Copa do Mundo de 2014 e as Olímpiadas de 2016 –, em que se impuseram um suposto “Padrão FIFA” aos estádios, um conjunto de normas e regras exigidos pelas entidades para “conforto” e “segurança” dos espectadores, mas que se mostrou na verdade um mecanismo de exclusão incisivo contra a população pobre do país. Ao final, o verdadeiro legado desses megaeventos se estampa nas cadeiras vazias de nossas “arenas” e no ataque explícito contra o torcedor brasileiro em âmbito cultural, político e social.

 

Censura e homicídio

 

Logo, por mais que possa parecer em um primeiro momento um aspecto somente econômico e financeiro, não se pode esquecer que a elitização, como outros temas, estabelece uma relação intrínseca e mútua com outros campos da sociedade. Por exemplo, politicamente, verifica-se que as arenas buscam restringir o comportamento dos torcedores e demandam uma forma diferente de torcer do público: elitizado e voltado estritamente ao consumo dentro das arenas. Assim, quando um grupo de torcedores do Cruzeiro, time da capital mineira, levou uma faixa em homenagem à memória da vereadora assassinada Marielle Franco ao Mineirão, foram barrados por seguranças contratados pela empresa Minas Arena, que administra o estádio por concessão, sob alegação de que faixas e bandeiras devem ter autorização da empresa para entrar. Procura-se, ao final, um torcedor passivo, preocupado somente com o “espetáculo” da partida e alheio à toda e qualquer outra questão que possa “atrapalhar” o entretenimento. As manifestações políticas populares são proibidas e restringidas para a implementação de um projeto político conservador e liberal.

Em âmbito social, se fala muito de um maior conforto e uma maior segurança para a torcida, mas a realidade se mostra bem diferente, pois é necessário se perguntar para quais torcedores essas melhoras se aplicam. Para Eros Dátilo, negro, morto por seguranças do Mineirão em 2016, não houve nada disso. Ele tentava passar para um outro setor que não o dele quando foi barrado e agredido fatalmente pelos seguranças. É necessário para este último ponto abrir um espaço de pessoalidade neste artigo, para demonstrar como o recorte de raça e classe é de extrema relevância na ilustração desse caso: este mesmo que vos escreve realizou a mesma ação de Eros recentemente no clássico Cruzeiro x Atlético-MG, pela Copa do Brasil, com a diferença que a reação dos seguranças foi passiva e compreensiva diante das justificativas de uma pessoa branca. Mais uma vez, reitera-se ser necessário o questionamento de para quais indivíduos todo esse aparente conforto e segurança é destinado. Outro caso que pode entrar neste questionamento é se o ambiente das arenas teve alguma melhora.

Como se sabe, o ambiente futebolístico foi construído e enraizado em uma cultura machista, que com o capitalismo e neoliberalismo têm seus efeitos reproduzidos e amplificados. Como exemplo, tem-se também uma situação grave que ocorreu sob a administração da Minas Arena, em um evento de comemoração de funcionários que trabalhavam no Museu do Futebol, espaço gerido pela empresa, no final de 2018. Durante a festa, uma das funcionárias foi assediada por um colega de profissão e acabou reportando este ato inaceitável para a empresa, cuja omissão e inércia foram as únicas ações tomadas pela coordenação. Dessa forma, não é surpresa ver uma megaempresa sendo conivente e perpetuadora de comportamentos como estes em situações que possam prejudicar seus objetivos lucrativos, mas é espantoso pensar que a retórica de conforto e segurança dessas novas arenas ainda possa ser tão difundida pela sociedade.

 

Financeirização da cultura

 

Por fim, culturalmente a torcida brasileira também perde com essas elitizações. Criminalização das organizadas e exclusão das classes populares trabalhadoras, ambas envolvidas de maneira mais profunda com seus clubes, pelo grande apreço que o futebol tem com a cultura popular, dão espaço à um novo torcedor, geralmente pessoas que não costumam ir às partidas, mas que passam a frequentar devido à uma espetacularização e visibilidade midiática que o futebol proporciona, estimulados pelo consumo e pouco preocupadas com a situação de seus clubes, que passam a ser vistos como parte do produto a ser consumido, com isso, esquecendo-se que constituem-se associações civis que necessitam realizar trabalhos em suas comunidades e exercer um vínculo maior com àqueles excluídos e explorados da sociedade, principais propulsores do sucesso do clube. Um exemplo simples e ilustrativo dessas questões pode ser verificado nas políticas que esses clubes realizam dependendo do cenário das equipes nos torneios. Quando estão fracassando nos campeonatos, as diretorias não balançam em diminuir os preços dos ingressos, para que aqueles que não conseguem frequentar as outras partidas retornem e o clube possa se reerguer da situação difícil pelo apoio das classes populares, alijadas com as novas arenas, mas ainda perseverantes em seu amor pelo clube que se habituaram a torcer.

A função desse pequeno artigo foi mostrar e de alguma forma denunciar o processo excludente e segregacionista que passa o futebol brasileiro nas últimas décadas. Capitaneado pelo capitalismo e por políticas de cunho neoliberal, o esporte mais popular do país é atingido por medidas que buscam retirar dele toda o seu caráter popular e colocá-lo na lógica do grande capital, transformando-o em simples produto para mercantilização.  Cabe à sociedade civil construir e travar uma luta contra todo esse movimento de exclusão, construindo a partir das demandas das classes populares formas de superação do sistema capitalista e neoliberal, principal agente destruidor em todas as camadas e sedimentos de qualquer forma democrática de poder.


Topo