“Poderá o proletariado, assumindo a posição de classe dominante na sociedade, criar a sua própria cultura como o fez a burguesia?”. Com essa instigante pergunta, Muniz Bandeira escreveu um prefácio de uma edição brasileira do livro “Literatura e Revolução”, de Leon Trotsky. A obra do revolucionário russo começou a ser escrita em 1922, e, originalmente, deveria ser um prefácio para o volume “Obras”, que seria lançado pela editora “Edições do Estado”. Porém, o assunto era tão complexo e a crítica às principais tendências artísticas e literárias da Rússia pós-revolucionária, do ponto de vista do materialismo histórico-dialético, eram tão profundas que o prefácio se tornou livro, lançado no ano seguinte.
Ainda na introdução, Trotsky afirmava que “essa nova arte seria incompatível com o pessimismo, com o ceticismo, com todas as formas de abatimento espiritual. É realista, ativa, vitalmente coletivista, e cheia de ilimitada confiança no futuro”. No primeiro capítulo, A Arte Anterior a Revolução, Trotsky narrou o fato de a Revolução de Outubro de 1917 destruir não apenas a burguesia russa, mas também toda a arte e literatura anterior. “Entre as revoluções de 1905 e 1917 toda uma geração da intelligentsia russa se formou no clima de uma tentativa de conciliação social entre a nobreza, monarquia e burguesia”. A Revolução encerrava o ciclo de possibilidade de conciliação de classes, o que fez com que toda esta intelligentsia, toda esta vanguarda artística, se tornasse estranha à própria conjuntura russa, não restando nada a fazer se não o exílio externo ou interno.
No segundo capítulo, “Os Companheiros de Viagem Literários da Revolução”, Trotsky discutiu aqueles escritores que “não têm nenhum passado pré-revolucionário, e, se romperam, com alguma coisa, foi afinal de contas com bagatelas. A Revolução formou, geralmente, sua fisionomia literária e intelectual, segundo o ângulo pelo qual os tocou. E todos eles aceitaram, cada um a sua maneira. Mas na aceitação individual, acha-se um traço comum, que os separa, nitidamente, do comunismo, e sempre ameaça volta-los contra o sistema. Eles não perceberam a Revolução no seu conjunto e o ideal comunista lhes é estranho”. A característica que percorre praticamente todos os escritores deste grupo é que “todos estão mais ou menos inclinados a depositar suas esperanças no camponês, por cima da cabeça do operário”. Para estes companheiros de viagem, “a questão consiste sempre em saber até onde ele irá”.
Futurismo e formalismo
Trotsky continua sua obra, agora escrevendo sobre aqueles que estariam mais próximos à Revolução. O terceiro capítulo, “Alexandre Blok”, consiste em discutir este artista, que “pertencia à literatura pré-revolucionária, mas recuperou a desvantagem e entrou na atmosfera de Outubro escrevendo 'Os Doze'. Eis porque ocupará um lugar à parte na história da literatura russa”. Os Doze é o poema que Trotsky atribui como sendo o poema da Revolução de Outubro. Por ser um elemento que não era necessariamente um bolchevique, mas que se esforçou para ir de encontro à Revolução, “ao fazê-lo, quebrou-se. O resultado de sua tentativa é a obra mais significativa de nossa época. Seu poema, Os Doze, permanecerá para sempre”.
O futurismo, vanguarda literária russa do momento logo após a Revolução, é o ponto em discussão no quarto capítulo. Sendo parte do resultado artístico de uma boemia pequeno-burguesa, foi um movimento surpreendido pela tomada de poder pelo proletariado quando ainda estava em formação. Trotsky faz a crítica a prática do futurismo de quebrar com tudo o que pertencia ao passado, pois nós, marxistas, vivemos com as tradições. Nem por isso deixamos de ser revolucionários. Estudamos história, aprendemos com a experiência, utilizamos do materialismo histórico-dialético. Destaca uma importante parte do capítulo a Maiakovsky, figura mais proeminente do futurismo russo, em que o caracteriza como um jovem extremamente talentoso, mas ainda com vícios de individualismo, hiperbolismo, uso de metáforas e paródias em locais incorretos e incompreensíveis para a classe operária. Porém, Trotsky julga que o futurismo poderia servir como condição fundamental para o nascimento da nova arte. O futurismo seria o elo indispensável entre a arte produzida durante o processo revolucionário e aquela que viria depois. E isso não é pouca coisa. No quinto capítulo, onde se debruça a discutir o formalismo, Trotsky afirma que esta era a “principal oposição ao marxismo na Rússia soviética”. “Essa escola, proclamando que a essência da poesia está na forma, reduz sua tarefa a uma análise descritiva e semi-estatística, de etimologia e da sintaxe dos poemas, à contagem de vogais, consoantes e epítetos que se repetem”. Mantido dentro do limite razoável, pode ajudar outros artistas. Os formalistas, porém, recusam-se a admitir que seus métodos não possuem outro valor a não ser como acessória utilitário e técnico, semelhante ao da estatística para as Ciências sociais. Definindo a divergência de maneira genial, Trotsky argumenta: “a escola formalista representa um aborto do idealismo, aplicado aos problemas da arte. Os formalistas revelam uma religiosidade que amadureceu muito depressa. São os discípulos de São João: para eles, no começo era o Verbo. Mas, para nós, o começo era a ação”.
Existirá cultura proletária?
No sexto capítulo, Trotsky chega à questão central do livro, que é a discussão se o proletariado terá tempo para criar uma cultura proletária. Para fazer esta discussão, Trotsky inicia afirmando que cada classe dominante produz sua própria cultura. Daí a dedução que o proletariado criaria, agora, sua própria cultura. Porém, as sociedades anteriores tiveram vida em uma longuíssima duração. E o problema é que não há analogia real entre o ciclo histórico da burguesia e da classe operária.
O desenvolvimento histórico da cultura burguesa começa muito antes da tomada do poder do Estado nas revoluções burguesas. Enriquecendo-se, ela começa, porém, a criar cultura própria. “As características sociais burguesas como classe social possuidora e exploradora determinaram o processo fundamental de acumulação dos elementos de uma cultura burguesa e sua cristalização num estilo específico”. Ora, enquanto o proletariado quer implantar sua ditadura como algo passageiro, para acabar com a existência do Estado e mesmo com as classes, a burguesia tem um plano de dominação eterna enquanto classe. Assim, a colheita cultural deveria ser socialista e não proletária.
Trotsky ainda, originalmente, escreveu dois capítulos no livro, sobre o qual deveria ser a função do partido na arte e o que seria a arte revolucionária e a arte socialista. Escreveu que o Partido deveria, em relação a arte, “protege-la, estimula-la e só indiretamente dirigi-la”, impulsionando, por exemplo, “jornais murais de fábrica, dar continuidade a sua criação artística do proletariado”. Demonstra que mesmo a arte revolucionária estava ainda em configuração, refletindo as contradições do período revolucionário, não sendo ainda a arte socialista. Esta, após eliminada a espontaneidade cega das relações econômicas e familiares, viverá em um momento em que todas as artes, da literatura à arquitetura, dará ao processo de confecção da arte socialista uma forma sublime.