O prefeito do Rio, o ex-bispo da IURD, Marcelo Crivella, mandou retirar a HQ “Vingadores: A cruzada das crianças” da Bienal do Livro, que aconteceu no Riocentro, em setembro. Segundo o prefeito, a imagem que retrata dois personagens se beijando é “conteúdo impróprio para menores”.
Nas palavras de Crivella, sobrinho de Edir Macedo, “a prefeitura do Rio determinou que os organizadores recolhessem esse livro, que já foi denunciado inclusive na internet e que traz conteúdo sexual para menores. Livros assim precisam estar embalados em plástico preto, lacrado e com um aviso do lado de fora sobre o conteúdo. Portanto, a prefeitura do Rio de Janeiro está protegendo os menores da nossa cidade”.
“Vingadores: A cruzada das crianças” é o 66º volume da Coleção Oficial de Graphic Novels Marvel, lançado no Brasil em 2016 pela Editorial Salvat em parceria com a Panini Comics, que republica gibis no chamado “formato de luxo”, com capa dura e folhas em gamatura diferenciada.
A história da HQ criticada pelo prefeito pentecostal envolve dezenas de heróis da Marvel em novas histórias e contextos. Wiccano e Hulkling, dois personagens dos “Jovens Vingadores”, são namorados.
Em apenas uma das páginas da HQ eles aparecem se beijando e em outra aparecem abraçados durante um diálogo.
A edição é escrita pelo americano Allan Heinberg e ilustrada pelo britânico Jim Cheung. Publicada originalmente nos EUA entre 2010 e 2012, “Vingadores: A cruzada das crianças” chegou ao Brasil em 2012, segundo a editora.
No plenário da Câmara Municipal do Rio, o vereador Alexandre Isquierdo (DEM) reclamou da comercialização do livro na Bienal. O vereador também publicou vídeo nas redes sociais, se juntando a um coro de reacionários fundamentalistas morais e religiosos que reclamavam do teor do conteúdo da publicação.
A prefeitura do Rio notificou extrajudicialmente a Bienal, não pedindo o recolhimento dos livros, mas dizendo que os exemplares da HQ fossem lacrados e viessem com uma classificação de censura indicando que há material ou cenas impróprias para menores de idade.
A Bienal se recusou a atender ao pedido da Prefeitura. Em nota, a organização do evento afirmou que: ”dá voz a todos os públicos, sem distinção, como uma democracia deve ser”.
E completou, dizendo que “a direção do festival entende que, caso um visitante adquira uma obra que não o agrade, ele tem todo o direito de solicitar a troca do produto, como prevê o Código de Defesa do Consumidor”.
A Bienal terminou no domingo dia oito de setembro e contou com um debate sobre literatura LGBTQA+ com participação João Silvério Trevisan (Companhia das Letras), Jaqueline Gomes de Jesus (Metanoia) e Tobias Carvalho (Record) na mesa “Diversidade, substantivo plural.
Censura e Repressão Versus Liberdade de Costumes
A experiência ensina que as iniciativas dessa natureza tendem ao fracasso. A liberdade de costumes muitas vezes prevaleceu sobre a tentativa de controlar os hábitos dos cidadãos em vários momentos da história.
Um exemplo brasileiro mostra bem como a repressão comportamental provoca efeitos contrários às pretensões das autoridades. Durante a ditadura, os militares tentaram impor censura nestas áreas. Eles proibiram sexo explícito em publicações impressas, no cinema e na televisão.
Não deu certo. Na década de 1970 surgiram manifestações libertárias, ostensivas e bem-sucedidas de contestação ao moralismo oficial. Na música, a banda Secos e Molhados caiu no gosto popular com o visual transformista e os requebrados do vocalista Ney Matogrosso.
Na mesma época, em São Paulo, o grupo underground de dança Dzi Croquettes escandalizou os conservadores com espetáculos precursores, no Brasil, dos movimentos LGBT que ganharam força nas últimas décadas.
As pornochanchadas produzidas na Boca do Lixo romperam as amarras da censura. As comédias com temática sexual, inicialmente sem mostrar os órgãos sexuais, lotavam salas de cinema em todo o país.
À medida que a ditadura se aproximava do final, as personagens perderam as roupas até a nudez total no início da década de 1980. Os primeiros filmes de sexo explícito foram exibidos no Brasil depois de anos vetados pelo governo, caso de O império dos sentidos, de Nagisa Oshima, O último tango em Paris, de Bernardo Bertolucci, e Emanuelle, de Just Jaeckin.
Algumas cenas também sofriam cortes. Antes da liberação total, as personagens de Laranja Mecânica tiveram as partes íntimas cobertas com bolinhas pretas visuais.
Em pouco tempo, essas restrições foram vencidas pela realidade. Simultaneamente, os filmes brasileiros também perderam os pudores impostos pelos generais.
A transgressão às regras puritanas se manifestou também no material impresso. Proibidas de circular no Brasil, as revistas pornográficas contrabandeadas do exterior eram vendidas às escondidas nas bancas de jornal. Os adolescentes disputavam os primeiros exemplares com a mesma ansiedade com que hoje aguardam os lançamentos de jogos eletrônicos e filmes de heróis.
Importante lembrar que naquele tempo não havia Internet, muito menos redes sociais. Logo, era muito mais difícil furar o cerco da censura. Agora, com o avanço tecnológico os brasileiros podem acessar sites de conteúdo livre sediados em qualquer lugar do mundo. Assim, as tentativas de cercear o conteúdo artístico e literário perdem força diante da realidade digital.
Já no caso da Bienal do Rio, o prefeito precisou de pouco tempo para descobrir que a censura produziu efeito contrário. O estoque do livro “Vingadores: A cruzada das crianças”, alvo do preconceito e da intolerância, esgotou-se no mesmo dia, logo após o “chilique” de Crivella nas redes sociais.
Também como reação ao gesto do chefe do Executivo municipal, inúmeras postagens de beijos gays entre anônimos e famosos lotaram as publicações das nas redes sociais.
O prefeito do Rio de Janeiro conhece bem as garantias legais para a liberdade de expressão defendidas na Constituição Cidadã de 1988. Mesmo assim, deixou-se levar pelo autoritarismo para tentar marcar posição política junto ao eleitorado evangélico que lhe dá sustentação.
Diante da determinação constitucional, se estivesse mesmo preocupado com as crianças, o ex-bispo Crivella deveria investir em educação laica, essa sim, a melhor maneira de preparar as futuras gerações para os desafios de seu tempo, sem o moralismo religioso que tenta enquadrar os cidadãos brasileiros.