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O Capital e as Chamas

V. Serge
    
O mundo está em chamas. Da Amazônia à Califórnia estalam e explodem as gramas e galhos secos das florestas, uma imensa massa viva; mas também irrompem em labaredas casas e carros, animais e pessoas. Seria a vingança furiosa da natureza frente ao consumo egoísta e desenfreado dos seus “recursos”? É tentador pensar que estaríamos lidando com uma força “kármica”, que buscaria retribuir o estrago feito, com juros de agiota.

Mas o que está acontecendo é que o capital invadiu todo o planeta; não existem mais partes do mundo onde sua invisível mão gélida, gananciosa por lucro, não alcançou. Ao longo do século XX, sob a bela bandeira do “desenvolvimento”, o capital alcançou todos os países do mundo; transformou antigas montanhas em minas de carvão (e nióbio); florestas em madeira; rios em esgotos; em suma, transformou a natureza em recurso para extração e consumo.

É verdade: de alguma forma o “desenvolvimento” capitalista parecia que seria a saída para todos os problemas do “terceiro mundo”; que, com uma ajudinha dos países “desenvolvidos”, nós poderíamos também termos carros e aviões, televisões e celulares, e cidades tão limpas e arrumadas quanto as alemãs. Sim, agora existem por aqui carros, aviões, televisões e celulares; mas nos lugares onde matas tropicais residiam, agora imensos pastos e plantações de soje se estendem. Os nossos rios produzem eletricidade, mas a custa de vilarejos inundados e peixes perdidos. O “desenvolvimento” capitalista não é a mãozinha que os condoídos europeus e norte-americanos esticam para tirar os pobres latino-americanos do atraso; é o roubo, puro e simples, daquilo que nos é mais precioso – a nossa terra, a nossa natureza, aquilo tudo que sustenta a nossa vida, disfarçado sob a carapuça de benévola caridade.

Mas acabou o tempo do “desenvolvimento” capitalista. Os limites planetários foram alcançados. O mundo está em chamas. Um breve panorama do novo inferno diário é suficiente para convencer-nos que tudo que esse crescimento econômico nos trouxe está no caminho da combustão:

Nos fins de 2018, durante a tradicional temporada de chamas (que, de fato, faz parte do ecossistema local) na Califórnia, algo sem precedentes ocorreu: o fogo atingiu não somente as distantes florestas, mas devastou cidades inteiras. A cidade (irônicamente) chamada “Paraíso” (Paradise), resultado da especulação imobiliária nos subúrbios, foi varrida do mapa por labaredas de proporções bíblicas – isso em uma das partes mais ricas dos Estados Unidos, coração da economia digital e próxima de Hollywood (Los Angeles). Oitenta e cinco pessoas morreram queimadas vivas em meio a casas e carros caríssimos. E, novamente, em 2019, como sempre, a Califórnia está em chamas. O inferno é o novo normal – evacuações em massa, milhares de pessoas dentro dos carros em rodovias rodeadas por imensas paredes de fogo, desesperadamente tentando fugir, e largando tudo que tinham pra trás. PG&E, a companhia privada de eletricidade da Califórinia, desligou a eletricidade para milhões de pessoas, sem aviso prévio, para tentar evitar incêndios – é óbvio dizer que pessoas que dependiam da eletricidade para sobreviver, como doentes que utilizam máquinas de auxílio respiratório, morreram imediatamente. O capital não se importa com os estragos, com os mortos, com nada, e ele sabe que chegou no seu limite de expansão: todo investimento vai acabar em cinzas. Mas ele precisa de continuar – essa é a sua maldição: ou ele investe, cresce, vira produção, vira “desenvolvimento”, ou ele implode. Para a sua lógica é preferível construir cidades que virarão túmulos enegrecidos pelo fogo do que parar de investir.

Mas também vemos a mesma lógica em ação aqui no Brasil: as imensas queimadas amazônicas, ainda ocorrendo em grande peso sobretudo no Mato Grosso, falam a mesma língua do inferno em Paraíso. Aqui, não são as cidades que queimam (ainda) mas florestas que tornam-se pasto, pela força do machado incendiário que destrói tudo. Encorajado presidente da República, o Capital na forma de imensos latifundiários lambe os lábios pensando nos seus imensos rebanhos, que não param de crescer, logo a serem abatidos, embalados e vendidos. É o “desenvolvimento”, é o superávit financeiro, é a exportação para mercados do mundo todo. Sagrado PIB que em seu nome todo crime é justificado, toda morte sacrifício, toda injustiça razão de Estado! E a Amazônia aproxima-se mais e mais do que os cientistas chamam do momento da virada: quando parte suficiente dela morrer, as chuvas vão parar de cair, pois dependem de uma quantidade mínima de umidade emitida pela floresta. Se (quando) esse momento chegar, nem mesmo pastos sobreviverão. Cada vez mais e mais nos aproximamos do abismo do Capital.

E mesmo em lugares com proteções ambientais, como nos países europeus, as florestas queimam. Mas elas queimam agora porque esse é o novo normal: Portugal, Espanha e Itália, ainda que todas as leis da antiga socialdemocracia protejam suas florestas, queimarão, porque o planeta agora se aqueceu o suficiente para que onde árvores frondosas podiam viver, apenas desertos poderão permanecer. O calor, se não explode em labaredas dantescas, mata pessoas; a depender do nível de umidade (se for alto o suficiente), uma temperatura próxima de 35ºC é capaz de matar pessoas, mesmo na sombra. Vimos isso ocorrer na França, na Alemanha, no Japão, no verão do hemisfério norte deste ano.

O novo inferno mundial não é acidente, não é descuido, não é erro; é a outra face do Capital; para todo novo investimento, um incêndio; para cada momento da produção, uma espécie em extinção. Isso não é uma “vingança de Gaia”, como se a natureza tomasse ação contra os “seres humanos” que nela habitam; é o próprio Capital produzindo seu fim. Mas esse fim não necessariamente leva ao socialismo; Rosa Luxemburgo clamou por “socialismo ou a barbárie”; a barbárie encontra-se muito próxima de nós. Lutemos pelo socialismo.    
 


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