No último dia 13, completaram-se 30 anos desde que foi publicado o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), que trouxe na sua abordagem direitos essenciais como saúde, educação e também o combate ao trabalho infantil. Contudo, se nessas três décadas o Brasil não conseguiu superar os problemas como racismo, violência doméstica e o abuso sexual que atingem as crianças e adolescentes que, em teoria, deveriam estar protegidos pelo Estatuto, agora o problema se agrava diante da investida conservadora do atual governo.
A violência que atinge crianças e adolescentes no País está diretamente ligada às diversas formas em que a desigualdade social se manifesta, principalmente o racismo. Dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) informam que no ano de 2016, 64,1% das crianças e adolescentes em trabalho infantil eram negros, assim como 82,9% das vítimas de homicídios entre 10 e 19 anos, e 75% das meninas que engravidam entre 10 e 14 anos. Os indicadores mostram, ainda, que a taxa de homicídio de adolescentes teve uma alta alarmante nos 30 anos do ECA e que o número de assassinatos mais que dobrou no País entre 1990 e 2017, ano em que 32 brasileiros, de 10 a 19 anos, foram mortos por dia. A Unicef estima que entre 1996 e 2017 chega a 191 mil o número de vítimas.
A estes números, o coordenador do Programa de Cidadania dos Adolescentes do UNICEF, Mário Volpi, acrescentou que ''uma criança negra tem três vezes mais possibilidade de abandonar a escola que crianças brancas'', o que demonstra que o Brasil está longe de superar o elemento do racismo e da desigualdade racial .
Extrema direita no poder coloca em risco o ECA
Durante a campanha eleitoral, em 2018, Bolsonaro declarou que “o ECA tem que ser rasgado e jogado na latrina. É um estímulo à vagabundagem e à malandragem infantil”. Sob seu governo, o Ministério dos Direitos Humanos se transformou em Ministério dos Direitos da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e está sob comando da fundamentalista evangélica, Damares Alves, que defende, em seu programa de prevenção à gravidez na adolescência, a abstinência sexual como método contraceptivo. Uma das primeiras consequências dessa guinada conservadora da pasta foram as eleições de uma grande quantidade de evangélicos bolsonaristas para os Conselhos Tutelares municipais, responsáveis, entre outras funções, por fiscalizar a aplicação do ECA.
Logo no início de seu governo, Bolsonaro defendeu o trabalho infantil e no ano passado, o partido que o elegeu, o PSL, levou adiante uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) com o objetivo de conferir uma nova interpretação ao ECA para que qualquer criança possa ser detida para averiguação ou por “perambulação”, desde que determinada por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária. A medida, rejeitada pelas entidades de defesa dos direitos da criança, pela Advocacia Geral da União (AGU) e a Procuradoria Geral da República (PGR) , tornaria legal uma prática abusiva que já acontece contra a juventude negra das periferias e favelas, que são as primeiras vítimas das detenções para “averiguação” e por “perambulação.
Maioridade penal e encarceramento
Presente nas discussões que geraram o Artigo 227 da Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente, a diretora do Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância (CIESPI) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Irene Rizzini, acredita que, apesar dos avanços conquistados, nenhuma lei é capaz de corrigir problemas sociais crônicos. "Não é o estatuto que vai corrigir a desigualdade social. mas é uma lei que, como as várias que vieram depois e políticas criadas a partir do seu referencial, proporcionou uma mudança positiva em inúmeros aspectos”, afirmou Rizzini.
Ainda segundo a pesquisadora, iniciativas defendidas pela extrema-direita que hoje está no poder, como reduzir a maioridade penal e aumentar o encarceramento de crianças e adolescentes no Brasil, são extremamente graves, levando-se em consideração que, no País, adolescentes e jovens são as principais vítimas de homicídio.
Rizzini também alerta sobre os retrocessos sociais caso crianças e adolescentes não ocupem uma posição de prioridade no orçamento público, e afirma que cortes em áreas como a saúde, educação e a assistência social podem reverter ganhos em indicadores como a mortalidade infantil, analfabetismo e desnutrição.
O governo Bolsonaro tenta, por diversos meios, reduzir ou mesmo aniquilar a participação da sociedade civil nos espaços de decisões políticas. Em setembro do ano passado, o presidente da República, através de um Decreto, tentou liquidar o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). O Decreto cassou o mandato de todos os conselheiros eleitos e empossados em 2019 e mudou o funcionamento do órgão, definindo que os membros do conselho fossem escolhidos por processo seletivo e não eleição. O Decreto também reduziu o número de conselheiros, passando de 28 para 18. Uma liminar do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, anulou o Decreto e restabeleceu o mandato de antigos conselheiros do Conanda, garantindo a eleição de representantes da sociedade civil e também a realização de reuniões mensais no órgão. A decisão de Barroso está válida, mas ainda não foi avaliada pelo plenário do STF. Também no Congresso Nacional tramita um Projeto de Decreto Legislativo que susta os efeitos do Decreto de Bolsonaro sobre o Conanda.
Desafios históricos, como a desigualdade, e contemporâneos, como questões ligadas à internet, devem ser abordados e debatidos à exaustão para que a sociedade descubra os rumos a seguir, defendendo a proteção daqueles mais vulneráveis. A defesa da manutenção e fortalecimento do Estatuto da Criança e do Adolescente é a defesa da mínima garantia de segurança que as crianças têm. A extrema-direita, que massacra a classe trabalhadora, quer destruir até mesmo essa pouca e falha proteção que o Estado burguês pode dar às crianças, cuja construção é fruto de intensa luta da sociedade organizada.