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Uma carta para o povo de Jacobina

Em 01 de janeiro de 2021, no dia da posse de Tiago Dias.

Caros e caras conterrâneas,

Eu cresci no Paraíso, zona rural de Jacobina, ouvindo sobre duas tendências político-partidárias: jacus e carcarás. Nomes de pássaros brasileiros. O carcará é ave de rapina, vista como mais agressiva, a águia do sertão. Do outro lado, os Jacus, aves que se parecem com galinhas, não são agressivas, mas são extremamente individualistas: quando o grupo se instala em um local, não aceita mais nenhuma ave da mesma espécie no mesmo lugar. As analogias com as aves, de início pejorativas, foram tomadas como símbolos positivos de dois grupos políticos de Jacobina. Músicas sobre carcarás e jacus eram usadas para se aproximarem do povo e criarem as identidades dos grupos. Não havia direita e nem esquerdas. Eram apenas famílias lutando pelo poder¹.

Porque crianças negras da zona rural, ainda muito pequenas, como eu, aprendíamos sobre a política dos coronéis que reinava na região? Porque meus pais e tantas outras pessoas simples se envolviam nas políticas das grandes famílias de Jacobina? Lembro-me bem das visitas do prefeito Carlos Daltro em minha casa para almoços. Ele, assim como outros, apareciam apenas neste momemto para garantirem os votos para reelegerem suas famílias para prefeitos e deputados. As promessas que faziam eram as de sempre: calçar as ruas, arrumar a estrada, furar poços artesianos para encontrar águas em fazendas dos eleitores, mandar carro-pipa com água e tratores para tirar o excesso de barro do tanque...

Começo este texto falando da disputa entre Jacus e Carcarás porque vi a notícia que Thiago Dias foi eleito como prefeito de Jacobina. O que há de diferente na eleição de mais um prefeito de Jacobina? Esta eleição marca um rompimento com a escolha de prefeitos que sempre pertencenteram aos mesmos grupos de pessoas brancas e da elite local. 

Este pequeno ensaio faz uma breve história de fatos políticos de Jacobina para nos ajudar entender as permanências e rupturas que aconteceram dentro dos mesmos grupos familiares, que se alternaram no poder por mais de 100 anos. 

Em 28 de julho de 1880, com o título de "Agrícola Cidade de Santo Antônio de Jacobina", Jacobina tornou-se município. O Brasil ainda era um Império e vivia no período da escravidão, que só foi oficialmente abolida em 1888. E o Brasil tornou-se República no ano seguinte, 1889. Jacobina, cidade de vocação agrícola e também rica em minérios, era dominada pela política do coronelismo. Líderes de famílias brancas e tradicionais eram indicados para serem os mandatários da região. 

Podemos dividir a história de Jacobina em quatro momentos: De 1893 a 1930 foi o período dos Intendentes. As pessoas nomeadas para estes cargos pertenciam às famílias nobres da região, proprietárias de terra e ligadas ao período colonial. Neste período, as disputas se davam entre as famílias de Galdino Cézar de Moraes e de Ernestino Pires

Período dos Intendentes 
1893-1903- Antônio Alves de Mesquita
1903-1920- Galdino Cézar de Moraes
                    Manoel Cardoso dos Santos
                    Ernestino Alves Pires
                    Arsênio César de Moraes
1920-1923- Francisco Rocha Pires 
1924-1928- Galdino Cézar de Moraes
1928 –1930- José Rocha Pires

De 1930 a 1942, no chamado “período Vargas”, houve uma grande centralização política, com o Golpe de 1930. Assim, os municípios passaram a ser administrados por prefeitos nomeados pelos interventores do Estado. Ou seja, não mudou nada na forma como eram feitas as indicações dos administradores de Jacobina. Nos anos 1920, despontou uma figura política, ligada à família Alves Pires: Francisco Rocha Pires. Para ser mais precisa, ele era sobrinho do intendente e coronel da Guarda Nacional, Ernestino Alves Pires. Com forte linhagem política, Francisco Rocha Pires passou a comandar o poder local no início dos 1920, e em 1935, foi eleito deputado estadual pela primeira vez.

Prefeitos de Jacobina no Período Vargas
1930-1942- Reinaldo Jacobina Vieira 
1942-1943- José Pinho de Freitas
1943-1944- Jose Joaquim de Almeida Gouveia
1944-1946- José Marcelino da Silva 
1946-1947- Gustavo Souza
1947-1948- Ubaldino Mesquita Passos.

 

 
   

Com a Constituição Federal de 1946, os prefeitos passaram a ser eleitos pelo povo. Em Jacobina, de 1946 até 1972, os prefeitos eleitos pertenciam ao grupo político de Francisco Rocha Pires. Oriundo da política do século XIX, Rocha Pires foi intendente de Jacobina no período de 1920-1924. A partir deste momento, consolidou-se na política local e regional como o maior nome da política de Jacobina, com influência junto ao Governador. De 1920 até a sua morte, em 1974, reinou como um dos mais temidos coronéis da região. 

Prefeitos eleitos, Pós-Constituinte de 1946

1948-1951-Vicente Grassi

1951-1954- João Batista Freitas de Matos

1954-1958- Orlando Oliveira Pires

1959-1962- Florivaldo Barberino

1962-1966- Ângelo Brandão

1967-1972- José Prado Alves (Zuquinha Prado)

 
   

A hegemonia de Francisco Rocha Pires política foi quebrada por Fernando Daltro, seu primo. O motivo é conhecido de todos: Fernando Daltro esperava ser ungido por Chico Rocha, mas isso não aconteceu. Então, Fernando Daltro decidiu lançar a sua candidatura e rompeu com o domínio de Chico Rocha, em meados da década de 1960. Mas, Fernando Daltro só veio a se eleger como prefeito de Jacobina em 1972. Fernando Daltro e seu grupo foram apelidados de Carcará. O outro grupo era chamado de Jacu.

Período dos Carcarás e Jacus

1972-1973 - Fernando Pires Daltro 

1973-1977- Gilberto Miranda

1977-1983- Flávio Antônio de Mesquita Alves

1983-1989- Carlos Daltro

1989-1993- Manoel Ignácio Martins Brandão

1993-1997- Carlos Daltro

1997 -2004- Leopoldo Moraes Passos 

2005-2008- Rui Macedo

2009-2012 - Valdice Silva (esposa de Leopoldo Moraes Passos).

2013-2016-  Rui Macedo

2016-2020- Luciano Antônio Pinheiro

 

A hegeomonia dos Pires, Mesquita, Daltro, Jacobina, Valois, Velloso, Coutinho e Miranda

 

O que quero mostrar com essa cronologia? Não é fazer uma história política dos “grandes homens brancos” de Jacobina. Longe disso.  Quero mostrar para as pessoas mais jovens que, desde os anos 1880 até o final dos anos 1990, Jacobina foi dominada por famílias que mantém seus poderes na região desde o Império, passando pela República Velha, o Estado Novo e adentrando na história contemporânea brasileira. Essas família tem nomes bem conhecidos: Pires, Mesquita, Daltro, Jacobina, Valois, Velloso, Coutinho e Miranda. Leopoldo Passos e sua esposa Valdice Silva (com vínculos com os Mesquita), são os últimos jacus eleitos, que ficaram 12 anos no poder. 

No final dos anos 1990, a troca de poderes entre estas famílias locais foi alterada pelo médico Rui Macedo. Natural de Andaraí-BA, lançou-se na política em Jacobina. Rui Macedo, venceu as eleições pela primeira vez em 2004 contra o candidato Olaf Nunes. Em 2012 foi reeleito. Em 2008, Valdice Silva foi eleita, com o apoio político do marido Leopoldo Passos. 

Observem que, durante vintes anos (1997-2016) o poder ficou entre as famílias de Leopoldo Passos/Valdice Silva e de Rui Macedo. Estas pessoas só deixaram o poder porque foram derrotadas nas eleições ou tiveram seus direitos políticos caçados. O último prefeito de Jacobina (2016-2020) foi Luciano Pinheiro, natural de Amargosa, que se integrou na política local quando foi vice-prefeito de Valdice Silva (2009-2012). Ele não tinha tradição local, mas tinha dinheiro.

Rui Macedo e Luciano Pinheiro não nasceram em Jacobina. Embora noviços na política local, rapidamente aprenderam como funcionava o sistema e passaram a desfrutar da amizade das altas hierarquias locais. Como já disse, não é possível dizer que, em Jacobina há partidos de direita e de esquerda dentre os prefeitos eleitos, até 2020. Então, os vínculos com partidos políticos e/ou com determinadas famílias dependem do jogo político que está na mesa em determinado momento. 

Outro elemento a ser observado no perfil dos prefeitos é a formação deles. Na fase dos intendentes e no período Vargas (1880-1946), a maioria dos prefeitos era composta de políticos com perfil rural e de comerciantes. Após a Constituinte de 1946 até 2016, houve uma grande predominância de médicos, que representaram quase 70%  dos prefeitos eleitos.  

Pós 1940, a maioria dos prefeitos de Jacobina, tinha formação superior. Eles buscaram aquelas profissões tradicionalmente vistas como mais prestigiosas. A elite do interior tem uma fórmula básica para se elegerem: enviam os filhos para as capitais para obterem uma educação superior. Ao retornarem para suas terras, esses homens são vistos como “iluminados” porque foram tocados pela ciência. Estes homens concentraram suas formações nos cursos de Direito, Medicina e Engenharias. As exceções foram Zuquinha Prado (funcionário público), Valdice Silva (assistente social) e Luciano Pinheiro (empresário).

De onde vem essa obsessão do povo para eleger médicos como prefeitos? Eles têm o prestígio da formação. Ser médico em Jacobina, no passado, era como ser um semideus. Eram adorados porque, naquele contexto de pobreza e fome, tinham o controle sobre a vida e sobre a morte das pessoas. Pois bem, é assim, que eles se veem e é assim que são vistos. Vão para Salvador como mero mortais e voltam formados como semideuses.

Contudo, a hegemonia de fazendeiros, médicos, advogados, engenheiros e ricos empresários foi colocada em suspenso nas eleições de 2020, por Tiago Dias. Houve uma ruptura na era dos Jacus e Carcarás em Jacobina.

 

Um prefeito negro

 

O novo prefeito de Jacobina é Tiago Dias, que nasceu em 1983, na zona rural de Jacobina, em Cachoeira dos Alves. Filho de agricultores. Infelizmente, como a maioria das crianças pobres e negras do nordeste, começou a trabalhar com seis anos para ajudar a família. A partir daí, até ele entrar na política, tem uma trajetória de trabalhos variados. Em geral, fez trabalhos manuais, trabalhos pesados, trabalhos informais sem qualquer garantia trabalhista, aos quais eram relegados às pessoas negras de origem rural. 

Tiago Dias não tem tradição na política e nem pertence às tradicionais famílias citadas acima. Tiago vem de uma família de agricultores e declara-se como agricultor. Construiu sua carreira política por meio de sua atuação na UAJA (União das Associações de Jacobina). Atualmente, acumula a experiência de duas legislaturas na câmara de vereadores (2012-2016 e 2016-2020). 

Queria reforçar que essa análise não tem qualquer tendência com esse discurso falso da meritocracia, que prega que se uma pessoa se esforçar muito vai ter uma vitória na vida. Desde o início da democracia moderna que se fortaleceu a crença de que, para ascender socialmente, basta que nos esforcemos. Assim, para a maioria das pessoas é o esforço que justifica o sucesso e alcance de alguma posição vantajosa. Mas isso não é verdade!

 Estudos realizados nas universidades e nossas experiência também mostram que a “origem” de cada pessoa e sua condição social tem um peso enorme sobre as escolhas que cada pessoas faz. Vejam os exemplos que apresentei acima de uma mesma família no poder por mais de 70 anos. Isso não é porque a pessoa se esforçou bastante! Mas sua origem determinou o seu sucesso. A origem e o dinheiro pesam sobre a carreira que a pessoa vai seguir. Logo, a possibilidade que um produtor rural tem de se tornar um político ou seguir uma carreira de sucessoo é uma em um milhão. 

Então, não me falem em meritocracia. Quando uma pessoa pobre fura a bolha da pobreza e da marginalização social, vira notícia porque isso não é a regra. Vocês acham que na época dos coronéis, uma pessoa negra e pobre poderia enfrentar o poder de um coronel e se candidatar por vontade própria? Vocês acham que vereadores, prefeitos e vereadores eram eleitos porque eles se esforçavam? Vocês acham que eles foram eleitos porque acordavam 4 horas da manhã para tirar leite das vacas e vender castanha na feira de Jacobina? Não! Aqueles homens brancos e mulheres chegavam ao poder porque pertenciam às famílias de prestígio. Por causa da dita “origem”.

Voltando ao impacto da eleição de Tiago Dias, digo que sua vitória chega como um sopro de esperanças para a área rural, sempre relegada a um plano secundário na região. 

Prefeitos de Jacobina dão mais atenção à área urbana da cidade de Jacobina e à mineração. Jacobina foi criada como cidade “Agrícola”, mas, em razão da valorização das atividades urbanas, como o comércio e também a mineração, os investimentos na zona rural foram minguando ao longo dos anos, pois, na zona rural é onde está a população pobre.

Não acredito que Tiago Dias esteja quebrando “tabu”, como alguém escreveu. Pois tabu é coisa proibida. Vamos direto ao ponto: Tiago quebrou a hegemonia da supremacia branca de Jacobina, nascida em berço de ouro, educada nas capitais e que olhavam para o povo como mero instrumento para subir a escada da política e atender seus interesses pessoais. 

Neste primeiro dia do ano de 2021 é importante lembrarmos que Jacobina foi construída por pessoas negras. Pessoas que trabalhavam nas minas de ouro, nas fazendas e nas casas de pessoas brancas. A herança do passado escravista foi e continua sendo reproduzida quando a maior parte dos cargos de prestígio e poder são assumidos por homens brancos. 

Tiago quebrou a hegemonia de mais de 100 anos de alternância de poder entre as mesmas famílias brancas, que residem entre Salvador e Jacobina. Famílias que administram com um olho no peixe e outro no gato. Famílias que querem aumentar o seu prestigio político e querem também aumentar o seu patrimônio. Do dia para a noite, políticos ficam ricos, assim como seus parentes. 

Não estamos esperando que Tiago Dias seja nenhum salvador e nem faça milagres. Não estamos esperando nenhum santo para salvar a região. Mas, esperamos que Tiago dê uma atenção para o povo.  Esperamos que Tiago cumpra sua promessa de campanha: governe para a cidade e para o campo. Espero que agora, o povo do campo receba a atenção que nunca teve.

Tomara que as alianças que promoveram a eleição de Tiago Dias não façam ele se perder no submundo da política. Tomara que as alianças de campanha não façam Tiago Dias trair os valores do POVO que o elegeu.

Tiago Dias representa uma ruptura não só para Jacobina, mas para todo o Brasil. As rupturas abrem possibilidade para novos tempos. 

No mais, continuaremos vigilantes e confiantes.


Vanicléia Silva Santos²
Filadélfia, 01 de janeiro de 2021.

 

¹ ARAÚJO, Carla Côrte de. Os Carcarás: política e sociedade na cidade de Jacobina (1966-1973). Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Salvador, 2012.

² Vanicléia Silva Santos nasceu em Paraíso, zona rural de Jacobina, onde estudou até o Ensino Médio. Fez sua graduação em História na UNEB de Jacobina. Fez o mestrado e o doutorado em São Paulo, na PUC-SP e USP, respectivamente. Suas pesquisas de mestrado e de doutorado abordam a presença da população negra em Jacobina. Trabalhou como professora de História da África na UNEB de Itaberaba (2009-2010) e na UFMG (2010-2020). Atualmente, é professora na University of Pennsylvania, EUA.
Agradeço às minhas colegas Cláudia Jacobina, Lucília Neves e Verônica pela ajuda com a pesquisa. 


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