No prefácio de sua história, muito antes de ser aclamado como “esporte nacional”, o futebol brasileiro era coisa de branco e de rico. Introduzido no Brasil no final do século XIX, por imigrantes ingleses, o “football” não admitia negros ou mulatos nos campos e estes também eram raros nas arquibancadas. No Brasil daquele tempo, o futebol tinha um sentido aristocrático, era “coisa de bacana”.
Nos meados de 1919, com a vitória da equipe brasileira no Campeonato Sul-Americano, a imprensa e alguns escritores passaram a dar destaque ao futebol, que logo caiu no gosto popular. Em 1921, quando negros já se destacavam no esporte, o presidente Epitácio Pessoa “recomendou” que o Brasil não levasse jogadores negros ao Sul-Americano daquele ano, na Argentina, pois, segundo ele “era preciso projetar outra imagem nossa no exterior”, composta “pelo melhor de nossa sociedade”. Esta era a política do Estado brasileiro em relação à população negra, que atingia também o futebol.
Vasco da Gama: símbolo da luta contra o racismo depois da 'Resposta Histórica' redigida há 95 anos
O Vasco foi o primeiro clube esportivo brasileiro a ter um presidente negro, Cândido José de Araújo, que ficou no cargo entre 1904 e 1906. Em 7 de abril de 1924, outro presidente do Vasco, José Augusto Prestes, assinou o manifesto que ficou conhecido como a Resposta Histórica, comunicando que o clube se recusaria a disputar a divisão principal do Rio de Janeiro sem seus jogadores negros, uma exigência imposta pelos “cartolas” da época.
O simbolismo dessa atitude insurgente transformou o clube cruzmaltino em estandarte da luta contra o racismo no esporte brasileiro. Tradicional clube de remadores, o Vasco só começou a se destacar nos gramados na década de 1920. Mas, sem a expertise dos outros times da zona Sul do Rio, a estratégia vascaína foi montar elencos com jogadores das classes sociais menos favorecidas, como operários, choferes, pintores e faxineiros.
A equipe campeã da segunda divisão em 1922, formada por atletas da base trabalhadora, assegurou ao clube, o direito de disputar a primeira divisão no ano seguinte, ao lado dos já consagrados América, Botafogo, Flamengo e Fluminense. O Vasco então arrebatou 11 vitórias em 14 jogos e faturou o título do campeonato organizado pela Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT).
Incomodados pelo sucesso dos vascaínos, os rivais derrotados decidiram criar uma nova liga, a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA), exigindo que o clube das “Camisas Negras” excluísse de seu plantel 12 jogadores que, de acordo com os cartolas, não tinham “condições sociais apropriadas para o convívio esportivo”. Por unanimidade, a diretoria vascaína recusou-se a integrar a AMEA e endereçou uma carta à liga esclarecendo que não abriria mão de jogadores negros e pobres. No quinto parágrafo da Resposta Histórica, a diretoria do clube detalha: “O ato público que pode maculá-los nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que eles, com tanta galhardia, cobriram de glórias”.
Enquanto os grandes clubes institucionalizavam o elitismo do futebol inventando um torneio paralelo, o Vasco se popularizava entre as camadas suburbanas e lotava os estádios cariocas. Em 1924, o clube cruzmaltino sagrou-se campeão invicto, do campeonato da LMDT. Diante do sucesso de público, renda e repercussão, o Vasco foi admitido na AMEA em 1925.
Alguns historiadores defendem a tese de que o aspecto econômico foi decisivo, tanto na defesa vascaína em nome dos atletas quanto na mudança de ideia dos cartolas sobre a exclusão do clube. Para estes, o Vasco não sobreviveria sem o talento de seus jogadores da classe trabalhadora, assim como a AMEA não lucraria sem a incorporação daquele time que arrastava multidões aos estádios.
A história do Vasco abriu os caminhos para a popularização do esporte que virou paixão nacional. O talento dos jogadores oriundos das classes populares, uma vez que o esporte permite formá-los em “campos de várzea”, com bolas de meia, superou o bloqueio do racismo e ajudou a aumentar os lucros dos cartolas. No entanto, hoje, com a sofisticação do futebol- empresa, astros negros no futebol brasileiro e mundial ainda conhecem bem o campo do racismo em que estão pisando. Dos xingamentos herdeiros de hábitos culturais às manifestações de supremacistas brancos em estádios na Europa, como jogar banana e xingar um jogador negro de “macaco”, percebe-se que o racismo latente torna-se explícito conforme a luta de classe se acirra e a democracia retrocede.
Por isso, não ser racista é pouco. Torna-se necessário ser anti-racista e defender o futebol como esporte popular, contra todas as investidas dos interesses elitistas nos estádios. O movimento negro deve dar uma resposta a esta questão, enfrentando o racismo com seus métodos de luta, senão muitos estragos continuarão a ser feitos, não só nos gramados, mas em toda a estrutura da sociedade.
Foto: Divulgação / Vasco