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Pandemia e maternidade: desafios enfrentados por mães negras no Brasil

Por Manuela Andrade, produtora cultural independente, mulher, negra, nordestina.

“Ou a gente se arriscava para trabalhar ou a gente não tinha como se manter, e eu optei por me arriscar e colocar as coisas dentro da minha casa”, esse é o relato de Lucimara Vicente, 23 anos, mulher preta, trabalhadora informal, gestante e mãe durante a pandemia. 

A COVID-19 evidenciou as diversas mazelas resultantes do capitalismo e tornou palpável, as discussões sobre classe e sistema econômico. Muitas dessas questões sequer são pautas nas casas dos trabalhadores e trabalhadoras, dado o grau de alienação a que estão submetidos. Porém, com a situação sanitária mundial, é na prática que estamos aprendendo. 

Com a necessidade do isolamento social, diversas áreas do trabalho pararam suas atividades. Mas quais trabalhadores, com ou sem emprego formal, puderam ficar em casa? Este é, talvez, o maior questionamento replicado em mais de 12 meses de “quarentena” - seja ela flexibilizada ou intensa. “Eu penso que o meu trabalho é essencial, pois sem ele eu não conseguiria me manter, então é bem complicado e triste também”, afirma Lucimara sobre não poder obedecer a quarentena e deixar sua filha exposta ao vírus. 

 

Mães solo

 

De maneira geral, toda a classe trabalhadora passa por inseguranças a respeito do amanhã, da alimentação, da moradia, da saúde etc. Entretanto, há uma parcela que está em situação ainda mais complexa: são as mães solos, mulheres que, sozinhas, trabalham, cuidam do lar e dos filhos, sem nenhum ou quase nenhum auxílio do genitor. 

Estima-se que, no Brasil, cerca de 57 milhões de lares são “chefiados” por mulheres, segundo os dados do IBGE. Dessas, 61% são negras, trazendo a importante reflexão sobre como o machismo se potencializa dentro das questões raciais. Melissa Vicente, trancista, artesã e negra, é uma dessas 57 milhões e elucida sua experiência com o pai de sua filha: “eu precisei cobrar maior participação depois que contraí Covid pela primeira vez, em junho/2020, e precisei fazer o distanciamento da minha filha por 15 dias. Mas não foi diferente de outros tempos, foi só mais uma das tantas coisas que precisei cobrar”, explica. A maternidade solo não é apenas quando o genitor abandona de maneira definitiva o lar, a companheira e a criança, mas também quando existe uma baixa frequência afetiva, financeira e de responsabilidade, quando, mesmo com o casal coabitando, não existe compartilhamento das responsabilidades exigidas por uma criança, criando uma sobrecarga nas mulheres.

Toda a questão da maternidade solo é histórica, de uma sociedade construída para que toda a carga do lar e das “crias” sejam postas na mulher. Com o advento da revolução industrial, as mulheres, mães e cuidadoras do lar se transformam em operárias, o que aumentou a carga física e psicológica sobre elas. Na atualidade, a situação das trabalhadoras está agravada com a COVID-19 e a necessidade do isolamento. São filhos sem aula, creche e opções de lazer, exigindo de mães trabalhadoras tempo e cuidado nas 24 horas do dia, uma verdadeira missão impossível. “A necessidade de isolamento e a necessidade de trabalhar se chocam bastante por aqui e refletem na maternidade. Desde ter que levar a criança ao trabalho, a ter que deixar aos cuidados de pessoas que interferem diretamente na minha forma de educar. Ser mãe, mulher e negra é viver os problemas de forma mais agravada. É ter a maternidade e a cor como um ponto a ser usado contra mim no desempenho do meu trabalho”, elucida a trancista.

De acordo com dados de 2020, do Instituto Locomotiva, 11,5 milhões de mulheres mães estão integralmente sozinhas. Destas, 57% vivem abaixo da linha da pobreza (dado que pode variar para mais, a depender do instituto de pesquisa). Com um vírus avassalador e mortal, como o coronavírus, para 31% das mães solo faltou dinheiro para comprar materiais de limpeza e higiene, essenciais para a segurança dos lares. Sequer o direito básico à alimentação é respeitado, pois para 35% falta comida na mesa.

 

Auxílio emergencial

 

O governo genocida de Bolsonaro, sob pressão popular e, consequentemente, de lideranças da esquerda no Congresso Nacional, foi praticamente obrigado a disponibilizar, embora com atrasos, o auxílio emergencial de R$600,00, valor que passou para R$300,00 e transformou-se, em 2021, em R$150,00 – importante destacar que os primeiros quatro meses deste ano contabilizaram mais mortes por Covid do que todo o não de 2020. “Recebi e continuo recebendo. Tem sido um complemento importante aos meus ganhos informais onde não tenho carteira assinada e ao meu trabalho com estética afro que também é incerto”, pontua Melissa. Ainda que exista o auxílio, ele é um complemento e, enquanto tal, exige uma renda a ser acrescida, pois sozinho não supre as necessidades básicas de uma família. Na situação sanitária que vivemos, o auxílio é irreal, uma vez que não permite aos trabalhadores fazer o isolamento social. 

Outra questão fundamental é que nem todos os necessitados tiveram acesso ao auxílio, seja por ausência de possibilidade de conexão com a internet ou de deslocamento até os pontos físicos de cadastro, sem estrutura para comportar a demanda. No caso das mães solo, estima-se que cerca de 75% entraram com o pedido, porém apenas 27% conseguiram ser contempladas.

 

Vacinação

 

As notícias sobre a entrega das vacinas e, posteriormente, sobre o início da vacinação veio como um “sopro de esperança” em meio ao caos. Contudo, pela falta de comprometimento, preparo e responsabilidade do governo Bolsonaro, nada mudou na vida dessas mães, afinal, suas profissões e idade não correspondem ao elegível como grupos prioritários. É importante enfatizar que mulheres negras, maioria de mães solo no Brasil, estão em profissões subjugadas, herança de um país escravocrata e em colapso econômico. Assim, é possível enxergar também na dinâmica de vacinação o projeto de extermínio da população negra, seja pela fome ou pela COVID.

De acordo com uma pesquisa publicada pela Agência Pública, os que se declaram brancos são duas vezes mais vacinados que negros no Brasil. No início de março deste ano, a pesquisa revelou que 3,2 milhões de pessoas brancas já haviam recebido uma dose da vacina, enquanto apenas 1,7 milhões dos vacinados eram negros. “Acho injusta essa dinâmica, principalmente com os pobres, que estão sendo os maiores prejudicados”, afirma Lucimara Vicente, mulher, negra, mãe trabalhadora informal e sem perspectiva no calendário de vacinação.

Como podemos ver, a necropolítica adotada pelo governo federal tem endereço certo: pobres, pretos e mulheres – os setores que, majoritariamente, compõem a classe trabalhadora.
 

Foto: Ismael Silva


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