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O fim da ocupação no Afeganistão

No último domingo, dia 15 de agosto, uma cena supostamente inacreditável foi presenciada: o Talibã entrou em Cabul, a capital do Afeganistão, quase sem resistência dos soldados do governo apoiado pelos EUA que, em grande medida, pareceram ter “desistido” de lutar contra os militantes do Talibã. Na verdade, a tomada do País pelo Talibã se deu ao estilo afegão, como dizem os especialistas na região, com muita persuasão, acordos entre as etnias e mínima perda de sangue, seguindo o manual clássico de células dormentes de guerrilheiros. Em proclamação oficial, os Talibãs ordenaram a suas forças que Cabul deveria ser capturada sem luta, para evitar baixas entre os civis. Como teria sido isto possível? É necessário recuperar a história do conflito para compreender melhor a situação.

O Afeganistão tem estado em guerra civil quase constante desde 1978, ano em que ocorre a insurreição que levou ao poder o Partido Democrático do Povo do Afeganistão (PDPA), que não alcançou grande apoio popular, dado o conservadorismo da composição de classe camponesa do País. O PDPA no poder tentou implementar uma agenda revolucionária, proclamando um estado laico, proibindo a usura, defendendo o direito das mulheres e a igualdade entre os sexos. O governo tentou também realizar uma reforma agrária mal planejada. O partido realizou expurgos contra suas alas moderadas e perseguições aos seus opositores. Suas reformas, baseadas em mudanças sociais e religiosas foram mal recebidas pela população, em sua maioria muçulmana e camponesa. Uma política que gerou, inevitavelmente, um conflito civil entre as guerrilhas camponesas conservadoras e o governo socialista, que rapidamente perdeu o controle da situação.

Em pleno contexto da Guerra Fria, o governo da União das Repúblicas Soviéticas (URSS), buscando não perder um possível aliado em ponto estratégico na sua fronteira sul, resolveu intervir. Assim se desenrolou uma guerra que durou quase dez anos (1979-1988), devastou o Afeganistão e tornou-se cara e impopular ao ponto de contribuir para a crise que, posteriormente, causou a desagregação da URSS. Mesmo com a retirada dos exércitos soviéticos, o governo socialista afegão sobreviveu até 1992, quando a guerra civil se faccionou em uma série de potentados locais. Os grupos guerrilheiros que disputavam o poder entre si eram facções com dimensões étnicas e, principalmente, se organizavam em torno de projetos político-ideológicos que iam desde a radical dedicação aos preceitos islâmicos até a defesa de ideais progressistas.

O Talibã surgiu nesse momento, por volta de 1994, composto principalmente por indivíduos do grupo étnico pashtun, majoritário no Afeganistão, responsável pela expulsão dos britânicos, no século XIX. Seu sucesso se deu não só pela característica étnica, mas porque teve apoio e financiamento do Paquistão e, assim, conseguiu conquistar Cabul e a maior parte do País em 1996, impondo sua forma particularmente radical e reacionária de dedicação ao Islã. Mas o apoio popular se deve, especialmente, ao fato de o grupo ter estabelecido a paz no território, após anos de guerras, ter combatido a corrupção e tornado as estradas mais seguras para o desenvolvimento do comércio. Apesar disso, o Talibã, que se manteve no poder até 2001, era considerado um pária internacional, sendo reconhecido por apenas por três países: Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita e Paquistão.

Em 2001, após o atentado das Torres Gêmeas, os EUA decidiram invadir o Afeganistão ostensivamente para capturar Osama Bin-Laden, o suposto mandatário saudita do ataque, que estaria se escondendo no País. Na realidade, a ação foi uma demonstração de vingança e de poder do governo dos Estados Unidos, sob comando de Geoge W. Bush, que enfrentava crise de popularidade. A invasão foi uma resposta à opinião pública estadunidense abalada pelo atentado de Nova Iorque. Iniciou-se uma guerra que durou quase 20 anos e que parecia jamais acabar. Porém, a realidade quase inevitável da vitória do Talibã já se mostrava há muito tempo.

O governo de Ashraf Ghani, apoiado pelos EUA no Afeganistão era notoriamente corrupto, e as quantidades imensas de apoio e recursos injetados no País, em grande medida, acabaram nas contas bancárias de burocratas e políticos que não tinham qualquer compromisso com o bem comum. Apesar da imensa quantidade de gastos militares, os soldados afegãos frequentemente estavam mal-armados, sem o soldo pago e, no geral, insatisfeitos com a situação. A moral do Exército, portanto, ia de mal a pior. Porém, não seria correto colocar a situação como exclusivamente causada por funcionários sem escrúpulos, que se enriqueceram por meio dos gastos despreocupados do governo estadunidense. Pelo contrário, a maior parte dos quase três trilhões (!!) de dólares gastos na guerra serviram para azeitar a indústria de guerra nos EUA: os maiores beneficiários do conflito foram os executivos da Boeing, Lockheed-Martin, e outras fabricantes de armas de guerra, que receberam contratos obscenos para armarem o exército estadunidense que atuava no Afeganistão.

Tal situação, evidentemente, tornou o governo afegão completamente incapaz de efetivamente exercer seu poder, exceto se apoiado pela força militar dos EUA. No momento em que o presidente estadunidense, Joe Biden, decidiu retirar as tropas do País, na calada da noite, sem nem mesmo avisar aos seus supostos aliados, o destino do Afeganistão estava selado: era só uma questão de tempo até o Talibã terminar de conquistar a região. Afinal de contas, o governo de Ghani, um pashtun que demonizava os Talibãs e era controlado pelos EUA, era odiado pela população afegã, dada a situação de crise social e econômica em que o País se encontra.

De todo modo, é incorreto dizer que a aventura imperial dos EUA fora simplesmente um fracasso patético: pelo contrário, economicamente ela foi um sucesso para a burguesia sanguinária do País. No entanto, politicamente, o desperdício de sangue, dinheiro e tempo dos estadunidenses nessa guerra ampliou a crise social interna dos país americano, cuja população se vê, hoje, ameaçada pelo desemprego e a fome.

É imperativo nos posicionarmos contra o imperialismo estadunidense que se apresenta como promotor de "intervenções humanitárias", em defesa dos direitos das mulheres e das minorias, quando, na realidade, seu único objetivo é a manutenção da economia de guerra capitalista. O que as intervenções dos EUA provocam onde ocorrem é destruição e mortes.

Ainda que o Talibã seja um movimento que se caracterizou pelo reacionarismo ao instaurar uma oligarquia religiosa no País, entre 1996 e 2001, a sua vitória sobre o imperialismo dos EUA, hoje, representa uma reversão fundamental na correlação de forças entre oprimidos e opressores, dada a magnitude do poder bélico e estratégico estadunidense. 

Não se trata de apoiar o Talibã como um "bastião do anti-imperialismo", uma vez que sua vitória se deve a novos arranjos geopolíticos na região, com influência da China, que já tem acordos econômicos estabelecidos para a reconstrução do País. O anti-imperialismo não é mérito do Talibã, mas sua condição de existência, uma vez que a intervenção dos EUA significou um desastre social para o povo afegão. Os líderes do Talibã estão se posicionando como defensores de um governo mais democrático, promotores de reformas progressistas e, se esta for uma exigência popular, caso não seja atendida, poderá levar à continuidade da guerra, desta vez com interferência de outras potências econômicas, numa continuidade da História da nação afegã, conhecida como “túmulo de grandes impérios”. 

Para os militantes de esquerda, é fundamental ter em vista que somente um governo genuinamente popular, composto pela classe trabalhadora, pode criar um futuro de soberania e bem estar social para qualquer povo. Isso é algo que somente os afegãos podem realizar por si mesmos.
 

Foto: AFP / Noorullah Shirzada


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