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Ucrânia: uma disputa interimperialista

Enquanto bombas assolam Kiev, a capital da Ucrânia, o mundo assiste ao que parece ser um reaquecimento da Guerra Fria. A comparação, no entanto, é apenas aparente, e ofusca pontos fundamentais para se compreender o novo contexto geopolítico. As políticas imperialistas dos Estados Unidos, que controlam a Organização do Atlântico Norte - OTAN, que deveria ter sido extinta após o colapso da União Soviética, e a Rússia governada por Vladimir Putin, não estão mais voltadas para a disputa do mundo pós-guerra, cujos acordos baseavam-se na coexistência dos regimes comunista e capitalista. Nesse sentido, o ataque à Ucrânia provavelmente marcará um novo momento na política internacional, que se vê diante de uma nova bipolarização Ocidente/Oriente. Putin não é Lênin ou Stálin, ainda que a OTAN continue sendo a OTAN que, sob controle do imperialismo dos Estados Unidos se espalhou do Atlântico Norte à Ásia Central e militarizou todos os estados ao redor da Rússia. Putin, um herói para muitos saudosistas da União Soviética, ávidos por um líder que possa enfrentar as constantes investidas da  maior potência capitalista atual, está muito mais próximo da extrema-direita contemporânea do que da antiga URSS. A aliança com países como Venezuela, Irã, Cuba, China e Coreia do Norte se sustenta pela existência de um inimigo comum, os Estados Unidos, e não por uma afinidade ideológica ou a identificação de Putin com o socialismo. 

O presidente Putin, que governa a Rússia por meio de eleições desde 1999, possui alianças com as aristocracias econômicas tradicionais do país. Em meio à atual conjuntura política russa, um nome influente ainda é pouco conhecido no Ocidente: Alexander Dugin, a principal referência intelectual do “neoeurasianismo”. No plano puramente ideológico, o “neoeurasianismo” defende a recuperação e controle da Rússia do território do antigo Império Russo, tendo como base a fusão das populações muçulmanas e ortodoxas. A Rússia teria uma identidade própria, distante da ocidental e claramente não-europeia, além de ser mais que um país, um continente à parte. A postura chauvinista tende a se fortalecer entre os trabalhadores sempre que um país com característica de potência econômica se vê ameaçado em suas fronteiras e em sua economia. O eurasianismo de Dugin vem a calhar com esse sentimento e se constrói tendo como base a defesa de um mundo “multipolar”, com cada polo de influência voltado para seus valores “tradicionais”, rejeitando assim, uma concepção de mundo moderna. Cada um desses polos seria dirigido por uma “elite espiritual”, aristocraticamente superior ao resto da população. No caso da Rússia, a Igreja Ortodoxa Russa deveria ser revigorada, seus padres atuando como líderes espirituais dessa nova potência.

O neoeurasianismo de Dugin tem como uma de suas bases, uma doutrina metafísica e política ainda pouco conhecida, mas cada vez mais influente na política contemporânea: o Tradicionalismo. O termo, muitas vezes escrito com “T” maiúsculo, pouco tem a ver com a noção de “tradicionalismo” corrente no senso comum. Trata-se de uma concepção, a princípio metafísica, que rejeita quase integralmente o mundo moderno e seus valores, inclusive os de igualdade, liberdade, fraternidade e vê as Revoluções Francesa e Russa como marcos da decadência humana que nos inseriram na Kali Yuga, ou “Era dos escravos”, termo advindo da tradição hindu. 

O Tradicionalista contemporâneo mais conhecido, junto à Dugin, é Steve Bannon. Já o personagem conhecido do público brasileiro que, apesar de ter rompido com o Tradicionalismo, manteve suas premissas, foi Olavo de Carvalho. Em comum, os três se posicionaram de maneira contrária ao que concebem como “globalismo”: a tentativa de determinadas potência em impor suas culturas e ideologias às outras nações, além de consolidarem uma lógica “materialista”, no caso, uma mentalidade voltada para os valores materiais, em detrimento dos espirituais. Algo bem distante do materialismo dialético do marxismo. No Brasil, outro Tradicionalista conhecido é Ernesto Araújo, o ex-chanceler do governo Bolsonaro e na Itália, a referência é Julius Evola, rechaçado até mesmo pelo Partido Fascista italiano por ter sido considerado “demasiado extremista”.

Dugin é bastante atuante nas redes sociais e nas universidades russas; suas ideias também são populares entre os figurões do Kremlin e nas Forças Armadas russas. Sua concepção neoeurasiana serve para justificar, diante de uma parte conservadora da população russa, as  decisões geopolíticas de Putin, uma vez que a ameaça da OTAN na fronteira da Rússia com a Ucrânia vem sendo construída há anos e teve como ápice a Revolução Colorida, promovida pela CIA, que levou a extrema direita ao poder. Hoje a Ucrânia é um celeiro de grupos neonazistas financiados pelo imperialismo estadonidense, fato que torna as relações seculares dos ucranianos com os Russos ainda mais contraditórias. 

É preciso compreender o imperialismo à luz da materialismo dialético de Marx e da teoria revolucionária de Lênin. Até o momento, Putin e Dugin se retroalimentam, porque a concepção Tradicionalista é, a princípio, anticapitalista em sua essência, pois é antimoderna, e pode parecer ao povo um instrumento contra o avanço dos Estados Unidos nos territórios em que residem os interesses econômicos russos. No entanto, na prática, trata-se de uma forma de controlar ideologicamente a população atrasada e conservadora, alimentando seu chauvinismo. A Rússia de Putin é um país capitalista cuja população convive com a herança das conquistas trabalhistas e sociais da Revolução de 1917. É de se esperar que a correlação de forças entre a grande burguesia, os setores médios e a classe trabalhadora se dê em perspectivas diferentes da que ocorre no Ocidente. 

A guerra na Ucrânia provavelmente marcará uma nova polarização mundial e a guerra de informações já é tática fundamental do Ocidente. Trata-se, mais uma vez de uma disputa interimperialista, por territórios, riquezas naturais e áreas de influência, a exemplo das primeira e segunda guerras mundiais. Não há que procurar heróis em meio ao fogo cruzado. É um xadrez geopolítico complexo, que não pode ser compreendido por fórmulas limitadas ou anacronismos históricos. 

Warley Alves Gomes.   

 

Foto: Reprodução / Facebook


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