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A guerra na Ucrânia e as suas consequências

No dia 24 de fevereiro de 2022, o exército russo iniciou uma ação militar na Ucrânia. A grande mídia ocidental imediatamente fortaleceu a narrativa na qual o dirigente da Rússia, Vladimir Putin, teria cometido esse ato de agressão de forma arbitrária, quase irracional, derivada de um suposto desejo autoritário de dominar um país mais fraco. A situação, evidentemente, é mais complexa do que isso.

A Ucrânia está em guerra civil desde 2014, quando ocorreram os protestos denominados de Euromaidan ("praça euro"), que depuseram o antigo presidente do País, Viktor Yanukovych, em prol do empresário bilionário Petro Poroshenko. O governo de Yanukovych era alinhado à política externa russa e os protestos tinham como objetivo fazer com que a Ucrânia passasse a se distanciar da Rússia e a se integrar à União Europeia. Esses protestos foram, em larga medida, bem-sucedidos porque contaram com recursos substanciais de organizações norte-americanas e europeias, e alinharam o governo ucraniano em direção ao Ocidente.

Esse alinhamento trouxe consigo um tremendo problema para a política externa da Rússia que, desde o fim da União Soviética, vem sendo intimidada e ameaçada pela progressiva expansão não só da União Europeia, mas, sobretudo, da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), o órgão oficial do imperialismo estadunidense. A OTAN tem tropas, bases e mísseis ao redor da Rússia, e frequentemente os governos dos Estados Unidos ameaçam a Rússia com manobras militares, testes de armamentos novos, etc.

A Euromaidan, assim, encurralou o governo russo, que se viu obrigado a responder de forma decisiva para se proteger. Além disso, o generoso financiamento estadunidense chegou às mãos de diversos grupos neonazistas na Ucrânia, que detestam a Rússia e desejavam assimilar, expulsar ou exterminar os habitantes de etnia russa do país. Assim, em 2014, a Rússia anexou, após uma breve operação militar e um plebiscite, a península da Criméia (onde se encontra a base de Sebastopol, uma importante base naval para a marinha russa no Mar Negro e um contingente significativo de populações russas). Além disso, as populações do leste da Ucrânia, sobretudo das regiões de Donetsk e Luhansk, têm um contingente russo significativo que se rebelaram contra a tomada do governo ucraniano por parte de políticos anti-russos. Eles formaram dois pequenos Estados, que contaram com apoio em recursos da Rússia, mas sem a presença do exército russo em números relevantes. É importante mencionar que, tanto Donetsk quanto Luhansk são regiões economicamente importantes na Ucrânia, com uma base industrial significativa para o país e operações de mineração substanciais.

A guerra civil pela independência dessas regiões foi marcada por massacres e atrocidades por parte dos contingentes nazistas do exército ucraniano que, ainda que não sejam extremamente numerosos (estão concentrados sobretudo no batalhão de Azov), têm uma influência significativa na política ucraniana. Houve uma tentativa de estabelecer uma trégua em 2015, com os chamados Acordos de Minsk, a partir dos quais as regiões de Donetsk e Luhansk teriam autonomia própria. Porém o governo ucraniano nunca honrou os acordos e nunca ocorreu um cessar-fogo na região.

Economicamente falando, a Rússia não é um país particularmente poderoso. Sua economia, em relação ao seu peso geopolítico não é forte: o PIB russo ocupa o décimo primeiro lugar, logo à frente do Brasil, sendo em torno de um trilhão e meio de dólares, e está, sobretudo, baseado na exportação de commodities energéticas (petróleo, gás natural), minerais, produtos agrícolas e armamentos sofisticados (uma herança da indústria militar da União Soviética. Isso significa que a economia russa poderá ser fortemente afetada por choques nos preços dessas commodities no mercado internacional.

Com isso estabelecido, a situação atual na Ucrânia toma outro caráter. Volodymyr Zelensky foi eleito em 2019 para a presidência da Ucrânia fazendo parte de uma chapa que tinha como objetivo declarado o fim da guerra civil, que vinha exaurindo o país há mais de cinco anos. Porém, ele não conseguiu cumprir suas promessas eleitorais e capitulou diante da sua base ultranacionalista (neonazista) e dos interesses do capital ocidental, que não deseja ver um fim para o conflito que seja favorável aos russos. O governo de Zelensky inflamou ainda mais as tensões ao insinuar que a Ucrânia iria se integrar à OTAN e produzir ou adquirir armamentos nucleares, colocando o governo russo na defensiva, já que mísseis atômicos colocados na Ucrânia levariam apenas cinco minutos para chegar em Moscou, um período curto demais para possibilitar qualquer cálculo estratégico. 

Assim, o governo russo realizou o clássico cálculo estratégico: melhor uma guerra agora, com o inimigo despreparado, do que uma guerra mais tarde, quando a chance de vitória será menor. A ação russa do último dia 24/02, apesar de todo um preâmbulo do Ocidente, garantindo que ela aconteceria, tomou de surpresa o mundo e fez com que a Rússia aparecesse, por meio dos olhos da mídia ocidental, como um agressor não provocado.  

Não devemos cair em frases de efeito vazias como "nem OTAN, nem Rússia", pois estas ocultam a verdadeira face da guerra no sistema capitalista, que não pode ser explicada pelos conceitos geopolíticos dos Estados burgueses. É necessário salientar o caráter de classe deste conflito, como em todos os que ocorrem no mundo atual, que toma a natureza de uma disputa imperialista por recursos naturais e regiões estratégicas e disputa entre burguesias nacionais. A Rússia é ameaçada pela presença da OTAN e Vladimir Putin e o seu governo são representantes da burguesia russa (que é tipicamente chamada de "oligarquia" pela mídia ocidental, como se isso fosse uma qualidade exclusivamente russa), de modo que a guerra não atende aos interesses do proletariado, tanto da Rússia quanto das repúblicas de Donetsk e Luhansk. Da mesma forma, tanto Zelensky quanto a OTAN não têm a menor preocupação com os interesses do povo ucraniano; eles são representantes da grande burguesia ocidental, sobretudo estadunidense, que está em disputa com a Rússia (e a China) pelos recursos naturais e demográficos do mundo.

É preciso ressaltar o caráter não só militarmente estratégico da Ucrânia, mas também econômico: como demonstrado no Sumário de Mercadorias Minerais de 2022 (MUSS) produzido nos Estados Unidos, a Ucrânia possui imensas reservas minerais (em especial na região leste do país, perto de Donetsk e Luhansk), possuindo a quinta (!) maior reserva de ferro mineral do planeta. Além disso, historicamente, a Ucrânia é um imenso celeiro, sendo, como demonstrado pela Organização de Comida e Agricultura das Nações Unidas (FAO), a sexta maior produtora de trigo do planeta, e a segunda maior produtora de sementes e óleo de girassol, além de produzir uma série de outros gêneros agrícolas cada vez mais importantes.

O controle da Ucrânia, assim, possibilita investimentos lucrativos para a burguesia que o possui e torna possível o controle estratégico de mercadorias essenciais. Pressões econômicas, como um bloqueio de vendas de gêneros alimentícios ucranianos, por exemplo, seriam desastrosas para a Europa. A tragédia, assim, é marcante: o povo ucraniano (e também o povo russo, em menor medida) está sofrendo imensamente por causa de disputas capitalistas internacionais que nada lhe dizem respeito e sobre as quais nada pode opinar. Ainda assim, não devemos perder de vista que este conflito começou originalmente com a agressão dos EUA e da OTAN; condenar o governo russo como irracional ou maligno neste momento é simplesmente servir, de forma irracional, aos interesses do Ocidente. 

No momento em que este artigo está sendo escrito, uma vitória russa parece inevitável, haja vista que tanto o governo Biden, dos EUA, quanto representantes da União Europeia descartaram a possibilidade de um contra-ataque militar, e falam em sanções econômicas à Rússia, o que poderá ser prejudicial para suas próprias economias. Porém, ela parece estar custando muito mais que os estrategistas russos haviam planejado, com resistência doméstica significativa (protestos constantes contra a guerra acontecem em todas as grandes cidades russas) e baixas substanciais no combate. Se uma vitória russa ocorrer, é possível que o imperialismo estadunidense tome um golpe quase fatal, com a total ruína da OTAN. Independentemente do resultado desse conflito, a classe trabalhadora de todo o mundo pagará um preço alto por ele. Portanto, devemos declarar: a autodeterminação dos povos só pode ocorrer se for obra desses povos e não da intervenção externa de nações imperialistas a serviço de grandes corporações capitalistas. Por isso, a organização revolucionária e internacional da classe trabalhadora deve ser a tarefa da esquerda mundial.

Foto: Getty Images


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