Em 2019, o mundo assistiu a revolta da população chilena contra os ataques neoliberais do então presidente Sebastián Piñera. No entanto, sem uma orientação centralizada, os protestos, que refluíram devido à violenta repressão e à chegada da pandemia, embora tenham sido responsáveis por levar ao poder um governo de esquerda, não conseguiram barrar as intenções da direita neoliberal, que precisam do conservadorismo herdado do pinochetismo para se concretizarem.
Os primeiros reflexos das revoltas populares se fizeram sentir em maio de 2021, quando a esquerda foi vitoriosa nas eleições para a Assembleia Constituinte, que escreveu uma nova Constituição para substituir a atual, herança da ditadura de Pinochet. Em seguida, houve a eleição de Gabriel Boric, um ex-líder estudantil de 36 anos, representante de uma aliança de esquerda que derrotou nas urnas o ultradireitista José Antonio Kast, que obteve 44% dos votos no segundo turno. Porém, a direita conseguiu se reorganizar e, em uma campanha conservadora suja, baseada em desinformações, impediu, por meio de um plebiscito realizado em setembro de 2022, a adoção da constituição, elaborada com a participação de representantes de grupos historicamente marginalizados pelo Estado chileno. Tais grupos ganharam espaço na Assembleia Constituinte graças à participação do eleitorado jovem e progressista nas eleições, como resposta ao clamor das manifestações nas ruas. Na época, das 155 cadeiras, 81 foram ocupadas por mulheres, além de 17 eleitos serem representantes indígenas.
Com a derrota da Constituição progressista no plebiscito, teve início um processo para a formação de uma nova Assembleia Constituinte, com a direita e a extrema-direita mais organizadas para controlá-lo, utilizando-se, sobretudo, dos fracassos econômicos e sociais do governo Boric. Assim, nas eleições para o novo Conselho Constitucional, realizadas no último 7 de maio, a extrema direita, representada pelo Partido Republicano (PR) de José Antonio Kast, obteve 35,41% dos votos e, com isso, ultrapassou, inclusive, a direita tradicional (21,1%). O PR também conseguiu para si o poder de veto e, juntamente com a direita tradicional, obteve representação de dois terços para vetar qualquer modificação que a comissão de especialistas sugerir ao projeto da nova Constituição. Derrotado nas eleições, o partido de Kast somou mais que o dobro de representantes das forças clássicas da direita, entre elas a Renovação Nacional (do ex-presidente Sebastián Piñera) e a União Democrática Independente (UDI, fundada por Jaime Guzmán, um dos ideólogos da ditadura pinochetista).
Assim como as dificuldades do governo Boric em conciliar os interesses populares com a pressão parlamentar que sofre, a necessidade que a direita tradicional tem de se aliar com a extrema direita fascista demonstra a crise sistêmica da burguesia, cujo projeto econômico foi rechaçado nos protestos de 2019. O extremismo fascista é a solução encontrada pela burguesia para impor pela força, e com apoio de pautas moralistas, racistas, machistas e homofóbicas, sua política de exploração da classe trabalhadora.
É certo que a nova Assembleia Constituinte não estará livre de contradições pois nasce sob o paradoxo de que o partido encarregado da mudança, o PR, defende a continuidade da Constituição de 1980. Mas a dura lição para a esquerda é a de que as pautas identitárias não são capazes de fazer frente à luta de classes que mobiliza a direita em defesa de seu projeto de poder. A classe trabalhadora deve participar da política institucional burguesa para ocupar espaços e disputar as tribunas em defesa dos interesses populares, mas não pode nutrir ilusões nessa política. Somente a luta organizada estrategicamente para a derrubada do sistema capitalista, que sobrevive da exploração de uma classe sobre a outra, pode garantir avanços seguros em direção à verdadeira democracia, controlada pela maioria da população.
A ausência de um partido de esquerda fortalecido para nortear os debates e manter aqueles que são descentralizados firmes diante de uma política tática para barrar o neoliberalismo, evitou que as exigências da população nos protestos levassem o Chile a uma efetiva guinada à esquerda. Pelo contrário, ao abandonar as ruas, em nome da crença de que poderia controlar a criação de uma nova constituição, a esquerda chilena deu brechas para o recrudescimento da extrema direita pinochetista, que se apresenta como solução para as crises de poder no país.
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