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Antigo Egito - História e Representações Contemporâneas

 “Mas eles são tão desenvolvidos, tem tanta tecnologia! Como um país assim pode ser na África?”. Com esta pergunta começou uma aula ministrada a alunos de quinto ano de ensino fundamental, que trataria sobre as organizações políticas africanas. Não é, de todo, uma surpresa. Conforme representada nos veículos midiáticos, a África se torna sinônimo de atraso, subdesenvolvimento e mazelas sociais. Quando não é assim, geralmente é representada como o lugar do exótico, com safáris, animais selvagens e agrupamentos de pessoas com costumes peculiares.

O Antigo Egito é uma exceção. Dada sua importância na formação geopolítica da antiguidade, ele é representado na indústria cinematográfica ocidental há muito tempo. Desde a longínqua curta metragem “Cléopâtre”, dirigido por George Méliès e estrelado por Jeanne D’Alcy, de 1899, ao atual “Deuses do Egito”, dirigido por Alex Proyas e estrelado por Gerard Butler, de 2016, esta organização política vêm despertado o imaginário da filmografia ocidental.

Interessante notar que em quase sua totalidade, os “egípcios” são retratados por pessoas brancas. Embora não haja consenso na arqueologia e na historiografia sobre estes fatores fenotípicos, é provável que houvesse certa miscigenação genética de pessoas com o tom de pele mais clara com pessoas de tom de pele mais escura, estas últimas provenientes do Império de Kush, fronteiriço ao Egito. Contudo, é quase certo afirmar que os egípcios desta época não eram brancos dos olhos claros, como costumeiramente retratados nos cinemas ocidentais.

Tão grave quanto isso é a ocidentalização dos costumes egípcios. Em lugar de ser tratado como uma instituição política com características particulares, traços marcadamente pertencentes às culturas ocidentais, como os valores cristãos, são recorrentes nas representações. Pode-se argumentar que isto é essencial à retórica da alteridade, ou seja, tornar inteligível aos espectadores uma cultura completamente diferente, descrevendo algo com relação a uma estrutura que já lhe é familiar na cultura de origem. Isto facilitaria a compreensão dos mecanismos do “outro”. A título de exemplo, ao comparar os anubis 4 faraós com um “imperador”, o entendimento da função social destes agentes fica de mais fácil compreensão. Porém, isto se torna uma perigosa armadilha, pois as particularidades que os faraós tinham em relação aos imperadores ocidentais desaparecem.

Passando diretamente à história, o Egito faraônico representa o primeiro reino unificado historicamente conhecido, e também a mais longa experiência de continuidade política e cultural da humanidade, estendendo-se entre 3000 a.C. até 332 a.C.  Cercado pelo deserto do Saara, sua existência só foi possível graças ao rio Nilo. Fonte de água, alimentos e via de comunicação, este rio foi essencial para o surgimento e desenvolvimento da civilização egípcia. Tal a importância do Nilo, que o calendário egípcio era marcado pelos períodos de cheia e de vazante do rio. Eram três estações do ano, a Akhet (inundação), Peret (crescimento das plantas) e Shemu (colheita), sendo que o primeiro dia do ano coincidia com o primeiro dia do mês de inundação.

Como se percebe, era também o trabalho no campo que marcava o cotidiano egípcio. Os campos eram semeados, sobretudo com cereais, como a cevada e o trigo, enquanto culturas menores também se desenvolviam em terras próximas ao rio, como o pepino, a cebola, o alho e a alface. A criação de gado e a pesca completavam as bases alimentares dos egípcios. Este trabalho era realizado pelos camponeses, que se encontravam no escalão inferior da hierarquia social.

No topo da hierarquia social estava o faraó, de poder absoluto e adorado como um Deus, sendo a suprema autoridade religiosa, militar, civil e judiciária. Segundo a literatura corrente, o primeiro faraó era chamado Menes, responsável pela unificação do norte e do sul egípcio. Os faraós contava com o auxílio de outros agentes para a administração do território, como o tjati, que exercia funções relativas à justiça, além de ser funcionário importante da cotidianoegitoadministração central, dos tesouros e celeiros do faraó. No apogeu do poder monárquico o tjati e outros grandes funcionários provinha da própria família real. Existiam também numerosos escribas, responsáveis pelos tão famosos hieróglifos.

A religião era politeísta, com vários Deuses sendo adorados, como Osíris, Deus da vida e da morte, Ísis, Deusa da maternidade e fertilidade e Rá, Deus do Sol. Estes numerosos Deuses são um reflexo da unificação do norte e do sul do Egito. Os Deuses de cada local, em lugar de simplesmente apagados da história, se agregavam ao panteão egípcio. Alguns deuses permaneceram puramente regionais, enquanto outros se impuseram em todo o país.

Um aspecto especial e muito importante da religião egípcia eram as crenças funerárias. Acreditava-se na vida após a morte, com o morto renascendo em sua própria tumba, que era sua “casa da eternidade”, na qual recebia oferendas de comida e bebida. As tumbas dos faraós eram as mais ricas e algumas delas sobreviveram até os dias atuais: as pirâmides egípcias, consideradas patrimônios culturais da humanidade.

Muito do que restou da literatura egípcia também fazem parte deste espectro religioso e funerário, como os textos em hieróglifos das pirâmides, os textos dos sarcófagos e o Livro dos Mortos, que serviria para orientar os mortos quando estes renascessem. As outras formas de produção artística, como as artes plásticas, também tinham forte ligação com os usos religiosos e funerários, sendo o faraó o principal financiador e consumidor de objetos de arte.

Leu-se nas linhas acima uma apresentação rasa, mas que demonstra uma cultura muito rica e vasta, dotada de impressionante organização política e social. Mesmo assim, ao assistir alguns programas de televisão fechada, vemos “historiadores” e curiosos em geral associando, por exemplo, a construção das pirâmides à tecnologia alienígena. Por mais inocente ou bobo que possa parecer, de fato, havia uma corrente filosófica que ao falar sobre culturas africanas, como o Egito, associava o desenvolvimento tecnológico a receber passivamente sucessivos empréstimos tecnológicos provenientes da Ásia Ocidental. Havia uma sistemática negação de capacidade criativa proveniente de culturas africanas, uma verdadeira “estagnação tecnológica”.

Isto nos trás de volta ao primeiro parágrafo deste artigo. Respondendo ao aluno, existiram sim, em vários momentos históricos, organizações políticas com impressionante grau de complexidade em África. É necessário, sempre que possível, estudar, compreender e divulgar esta agência africana, de forma a acabar com os estereótipos racistas, colonialistas e imersos em sensos comuns relativos ao continente e aos povos africanos. 


Felipe Silveira de Oliveira Malacco 

* Sobre os conceitos de retórica de alteridade e injunção narrativa: HARTOG, F. O Espelho de Heródoto: Ensaio Sobre a Representação do Outro. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. 

** Sobre o Egito Antigo: LÉVÊQUE, P. As Primeiras Civilizações. Vol. I – Os Impérios do Bronze. Vila Nova de Gaia: Edições 70, 1990 e CARDOSO, C. F. S. O Egito Antigo. São Paulo: Editora Brasilense, 1989. 


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