A Universidade de São Paulo (USP) continua a operar sob um regime disciplinar autoritário instituído durante a ditadura militar. O Decreto nº 52.906, de 1972, elaborado sob o Ato Institucional nº 5 (AI-5), foi redigido pelo ex-reitor Gama e Silva e deveria ter caráter transitório. Contudo, ele permanece em vigor, sendo utilizado como instrumento de repressão contra estudantes, professores e trabalhadores que se opõem às políticas da Reitoria.
Mesmo após a suposta redemocratização do país e a promulgação da Constituição Federal de 1988, o decreto mantém sanções severas, incluindo a proibição de manifestações político-partidárias e greves. Ele também prevê punições para atos como "incitar, promover ou apoiar ausências coletivas aos trabalhos escolares".
O caso do debate nas Ciências Moleculares da USP
Em novembro de 2023, a Universidade abriu um processo administrativo-disciplinar (PAD) contra cinco estudantes, três deles do Curso de Ciências Moleculares e dois de outros cursos, por suposto “antissemitismo” e “discurso de ódio”. Os alunos estão sob risco de expulsão após participarem de um debate sobre a questão palestina, realizado em assembleia do curso de Ciências Moleculares (CCM), em outubro daquele ano.
A assembleia debateu o contexto dos impactos do financiamento de ações militares de Israel contra o povo palestino. Após a reunião, falas do evento foram deturpadas e compartilhadas em grupos de extrema direita, o que resultou em ataques virtuais e ameaças contra estudantes árabes e envolvidos na organização do evento. Dias depois, a USP instaurou o processo administrativo, acusando os estudantes de infrações como “perturbação” e “propaganda de caráter político-partidário”, com base no Decreto 52.906. De acordo com o Informativo Adusp Online, os discentes processados estão sujeitos à expulsão com base nos artigos 249 e 250 do Regimento Geral da USP, “por fala-denúncia acerca do genocídio do povo palestino”. Na interpretação de quem apoia o grupo processado, o PAD resulta não apenas do viés pró-Israel da coordenação do CCM, mas também da intenção de retaliar a greve discente de 2023
Estudantes e movimentos sociais denunciam a ação como perseguição política e censura, destacando que o regimento utilizado é uma norma inconstitucional, recomendada para revisão pela Comissão da Verdade da USP desde 2018. Segundo relatos, o processo carece de individualização das acusações e fere os direitos de defesa dos envolvidos.
Protestos contra o genocídio palestino e parcerias controversas
Além das repressões internas, a USP também tem enfrentado críticas por suas relações externas, especialmente com instituições israelenses. Em maio deste ano, estudantes montaram um acampamento pedindo o fim das relações diplomáticas e dos convênios com universidades israelitas. A universidade mantém acordos de cooperação acadêmica e tecnológica com empresas e universidades de Israel, algumas das quais estão diretamente envolvidas na produção de armamentos utilizados em ataques contra a população palestina.
Estudantes e organizações sociais têm se manifestado contra essas parcerias, denunciando o apoio implícito da USP às práticas de apartheid e genocídio conduzidas pelo governo de Israel. Essas críticas resultaram em protestos dentro do campus, que foram reprimidos pela administração universitária. Essas ações reforçam a postura elitista e repressiva da USP, que não apenas silencia vozes críticas, mas também alinha sua política internacional a interesses que contradizem os princípios de direitos humanos
Histórico de repressão: autoritarismo como prática institucional
Com base no mesmo regimento disciplinar de 1972, a Reitoria da USP instaurou processos administrativos contra 21 estudantes que participaram das ocupações da Reitoria em 2007 e da Coordenadoria de Assistência Social (Coseas) em 2010. A punição máxima prevista é a eliminação, ou seja, a expulsão dos estudantes, impedindo-os de manter qualquer vínculo futuro com a universidade. Deste episódio, doze alunos foram expulsos e metade destas expulsões já foram revertidas na justiça.
As ocupações faziam parte de movimentos legítimos que reivindicavam melhorias nas condições de ensino, moradia estudantil e assistência social. No entanto, a resposta da administração foi marcada pela repressão e pela criminalização de lideranças estudantis, reforçando a lógica autoritária que permeia a gestão da universidade.
Desde a gestão do ex-reitor João Grandino Rodas (2009-2013), a USP tem intensificado sua postura autoritária. Sob sua administração, a Polícia Militar foi acionada para reprimir manifestações no campus, e servidores grevistas tiveram salários cortados. Além disso, processos administrativos e sindicâncias têm sido utilizados para intimidar sindicalistas e lideranças estudantis.
O ex-reitor Marco Antonio Zago (2014-2018) manteve e ampliou essas práticas. Em declarações públicas, Zago atacou a presença de sindicatos na Universidade e defendeu a adoção de um modelo meritocrático que ignora a função pública e inclusiva da USP. Sua gestão promoveu uma política de vigilância e repressão, instaurando sindicâncias e processos administrativos contra centenas de membros da comunidade acadêmica. A gestão atual de Carlos Gilberto Carlotti Júnior (2022-2026) tem demonstrado a continuidade da política repressiva da universidade.
Revogação e democratização: um caminho urgente
É essencial que a USP revogue imediatamente o Decreto nº 52.906, interrompa todos os processos disciplinares baseados neste regimento e encerre as parcerias com instituições envolvidas em práticas de genocídio, como no caso de Israel.
A luta por uma universidade plural, inclusiva e democrática exige o rompimento com as práticas autoritárias do passado e a construção de um ambiente onde o debate e a diversidade de ideias sejam incentivados, e não punidos.
Os ataques aos estudantes que se posicionaram contra o genocídio palestino, assim como aos que lutam por uma universidade mais justa, são ataques ao próprio conceito de educação pública e igualitária. A LPS repudia veementemente o episódio, classificando-o como censura universitária e uma tentativa de silenciar movimentos de solidariedade ao povo palestino. A USP deveria ser um espaço de livre debate de ideias, mas ao utilizar uma norma autoritária da ditadura militar para perseguir estudantes, ataca os princípios democráticos que deve defender.
A LPS reforça seu apoio aos estudantes e à luta por justiça na Palestina, destacando a necessidade de revogar o regimento disciplinar e abrir o debate democrático na universidade. Ser pró-Palestina não é antissemitismo. Defender a vida, a dignidade e a soberania de um povo é um ato justo e urgente.
FOTO: RAWA ALSAGHEER/DIVULGAÇÃO