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Trabalhador não é colaborador: a ilusão por trás do eufemismo corporativo

Onde deveria existir união e luta por direitos comuns, insinua-se a falsa ideia de que patrões e empregados são são "parceiros" em igualdade de condições.

A linguagem nunca é neutra. As palavras carregam ideologias, moldam percepções e, não raro, servem como instrumentos para diluir realidades incômodas. Nos últimos anos, o “mundo corporativo” (ler-se capitalismo) adotou com entusiasmo a substituição de termos como “trabalhador” ou “empregado” por “colaborador” ou “parceiro”. À primeira vista, a mudança parece inofensiva, quase um gesto de inclusão. Por trás dela, porém, esconde-se um projeto mais profundo: negar o conflito de classes e a assimetria intrínseca às relações trabalhistas, transformando desigualdades estruturais em uma ilusão de harmonia. 

A escolha da expressão “colaborador” não é casual. Derivada do latim collaborare (“trabalhar junto”), a palavra sugere uma relação horizontal e supostamente igualitária entre patrões e empregados. Essa narrativa, contudo, ignora um fato essencial: a relação de emprego é, por definição, vertical - hierárquica - e baseada em subordinação. O trabalhador vende sua força de trabalho em troca de salário, enquanto o empregador detém o poder de ditar condições, horários e metas. Chamá-lo de “colaborador”, portanto, é uma tentativa de camuflar essa dinâmica de poder, como se ambos os lados compartilhassem riscos e lucros em igual medida. 

Mais do que uma disputa vocabular, trata-se de um esforço estratégico para enfraquecer a consciência de classe. Ao substituir “empregado” por “colaborador”, busca-se diluir a noção de interesses divergentes: de um lado, o trabalhador busca salários dignos e qualidade de vida; de outro, o empregador visa reduzir custos e ampliar lucros. Essa tensão é inerente ao capitalismo, e fingir que ela não existe beneficia principalmente quem está no topo da pirâmide. 

Não por acaso, o Direito do Trabalho surgiu como resposta a esses conflitos, fruto de lutas históricas por dignidade. Normas como jornada máxima, salário mínimo e proteção contra demissões arbitrárias reconhecem a vulnerabilidade do trabalhador frente ao poder econômico. A atual flexibilização dessas leis — muitas vezes justificada como “modernização” ou “estímulo ao empreendedorismo” — reflete, sob uma perspectiva crítica, um movimento de desmonte de conquistas sociais, convertendo direitos em mercadorias negociáveis. 

Diante desse cenário, a insistência no termo “colaborador” não é ingênua. Ela caminha lado a lado com essas práticas de erosão dos direitos trabalhistas, com práticas como a terceirização indiscriminada, a pejotização e o trabalho por plataformas, que transferem riscos do empregador para o trabalhador. Se o empregado é um “parceiro”, a lógica perversa questiona: por que precisaria de carteira assinada, férias ou décimo terceiro? A linguagem, aqui, torna-se um cavalo de Troia: sob um verniz de igualdade, reforça a precarização das relações laborais. 

Subestimar o poder das palavras é um erro perigoso. Quando um trabalhador é rebatizado de “colaborador”, sua condição material não muda: ele continua sujeito a ordens, metas abusivas e à ameaça do desemprego. O que muda é a percepção de sua realidade. Se não há patrão, não há luta; se não há exploração, não há resistência. Rejeitar esse eufemismo, portanto, é um ato de reafirmação da luta de classes, não mero purismo linguístico. 

Trabalhadores não são colaboradores. São sujeitos de direitos, protagonistas de suas histórias e agentes essenciais na construção da riqueza que, hoje, segue concentrada desproporcionalmente. Reconhecer isso é o primeiro passo para exigir um mundo onde a dignidade não seja confundida com favor, e onde a linguagem não sirva para mascarar, mas para revelar as estruturas de poder.

 

A situação dos sindicatos frente a essa questão

 

A insistência no termo “colaborador” também mina a força coletiva dos sindicatos. Essas organizações dependem da identificação comum dos trabalhadores como classe com interesses compartilhados e antagônicos aos dos empregadores. Ao promover a ideia de uma parceria supostamente igualitária, o discurso do “colaborador” fragmenta essa unidade, substituindo a noção de coletivo por uma lógica individualista. Se cada trabalhador é visto como um “parceiro” autônomo do empregador, a necessidade de representação sindical parece menos evidente, como se conflitos pudessem ser resolvidos caso a caso, por meio de negociações pessoais. Na prática, essa narrativa desarma os trabalhadores: sem perceberem-se como grupo com demandas estruturais, tornam-se mais vulneráveis às pressões patronais e menos propensos a mobilizar-se por direitos coletivos. 

Não é coincidência que a ascensão desse vocabulário ocorra paralelamente às políticas de flexibilização trabalhista e ao declínio das taxas de sindicalização. Afinal, um “colaborador” não entra em greve – ele “dialoga”. Não exige direitos – “sugere melhorias”. A linguagem, aqui, é ferramenta de desmobilização: ao apagar as linhas de conflito, esvazia a razão de existir dos sindicatos. Se não há trabalhadores unidos por condições precárias, mas apenas “colaboradores” isolados buscando “crescimento mútuo”, a resistência organizada perde sentido. Os sindicatos, então, enfraquecem não por irrelevância, mas porque o próprio terreno de luta é sutilmente envenenado por palavras que dissolvem a noção de exploração. 

O eufemismo, portanto, não se limita a camuflar as hierarquias sociais – ele também enfraquece diretamente a capacidade da classe trabalhadora de se organizar politicamente. Onde deveria existir união e luta por direitos comuns, insinua-se a falsa ideia de que patrões e empregados são "parceiros" em igualdade de condições. Dessa forma, mina-se a solidariedade essencial para a ação coletiva. 

As consequências são concretas: a perda de força nas negociações, a aceitação passiva de desigualdades e a perpetuação de um sistema em que quem controla o capital dita as regras do jogo. Rejeitar a linguagem que disfarça essa realidade não é mera discussão semântica – é um ato político. Defender termos como "trabalhador" fortalece a identidade de classe e reafirma a urgência dos sindicatos como ferramentas de resistência e mudança social. A escolha das palavras, aqui, define de qual lado da trincheira ideológica estamos.
 

Foto: Reprodução web

 


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