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A hipocrisia da "dona de casa" no discurso da austeridade estatal

No calor do debate econômico e político brasileiro, uma analogia se destaca pela sua persistência e aparente simplicidade: a comparação da gestão das contas públicas com o orçamento de uma “dona de casa”, que corta despesas quando o dinheiro aperta. Ministros, presidentes e governadores, de Paulo Guedes a Michel Temer e Romeu Zema, recorrem a essa parábola para defender a austeridade fiscal e a redução dos gastos estatais. No entanto, uma análise mais profunda revela que essa metáfora não é só simplista, mas também falha em vários aspectos cruciais, distorcendo a realidade da gestão pública e até mesmo a da gestão familiar.

A Falsa Simetria entre a Casa e o Estado

 A primeira e mais evidente falha reside na falsa simetria entre um lar e um Estado. Uma família, ao enfrentar dificuldades financeiras, naturalmente prioriza a saúde e a educação de seus filhos, cortando gastos “supérfluos” como lazer ou itens não essenciais à sobrevivência. A intenção é preservar o bem-estar e o futuro de seus membros. Contudo, na prática da austeridade estatal, a tesoura orçamentária frequentemente atinge justamente os serviços essenciais, como saúde e educação públicas. Essa abordagem contrasta com a lógica familiar, onde cortar o investimento nos filhos seria uma medida desesperada e de último recurso.

A ironia é que a figura da "dona de casa" é evocada para transmitir a ideia de uma gestão prudente e sacrificial, que age pelo bem maior. No entanto, o político que defende tais cortes não tem a mesma relação íntima e direta com a população afetada. Não há a mesma dor ou empatia intrínseca que motivaria uma decisão familiar. Os cortes estatais são, muitas vezes, decisões frias, baseadas em números, interesses de pessoas muito ricas e de fora do Brasil, distantes do sofrimento humano que podem gerar.

A Realidade do Endividamento Familiar e o Estereótipo de Gênero

Outro ponto que desqualifica a analogia é a própria realidade do endividamento das famílias brasileiras. Longe da imagem de um lar sempre com as contas no azul e em austeridade total, os dados da Confederação Nacional do Comércio (CNC) revelam que a grande maioria das famílias brasileiras, cerca de 76,7%, em dezembro de 2024, está endividada. Um percentual significativo, 12,7% das famílias brasileiras, em janeiro de 2025, sequer têm condições de quitar suas dívidas. Isso mostra que, para muitos lares, a tomada de crédito não é uma opção, mas uma necessidade para cobrir despesas básicas e urgências, incluindo saúde e educação. Se as famílias precisam se endividar para proteger seus membros e investir em seu futuro, por que o Estado, com suas responsabilidades sociais e de longo prazo, deveria operar sob a premissa de zero dívida e cortes irrestritos, sacrificando justamente as áreas que representam o maior investimento na nação? Já pensou, que, se o Estado ajudasse, o número de famílias endividadas seria bem menor? A quem interessa manter as famílias endividadas? É obvio que as áreas que não deveriam sofrer cortes são as que atendem a maioria da sociedade, em especial os mais vulneráveis socialmente, que são os que mais precisam ser protegidos pelo Estado. Manter as famílias endividadas é de interesse das instituições financeiras, especialmente bancos e empresas de cartão de crédito, que lucram com os juros e taxas sobre os empréstimos e dívidas. Em outras palavras: lucram com a exploração e desespero dessas famílias.

Por fim, a apropriação da imagem da "dona de casa" é duplamente questionável por reforçar estereótipos de gênero. Ao colocá-la como a principal ou única gestora prudente do orçamento, o discurso público, mesmo que sutilmente, limita o papel da mulher ao espaço doméstico, ignorando sua crescente e diversa atuação em todas as esferas da sociedade.

Ao invés de simplificar, a analogia da "dona de casa" descaracteriza a complexidade da gestão pública e as duras realidades socioeconômicas. É hora de abandonar essa metáfora desgastada e focar em um debate fiscal mais honesto, que reconheça as particularidades do Estado e suas verdadeiras responsabilidades com o futuro de todos da nação e coloque a população no centro de suas decisões.

 

Foto: reprodução web


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