A recente implantação do Programa de Desligamento Voluntário Dirigido (PDVD) pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), direcionado a setores estratégicos como Jurídico, Almoxarifado, TI e Atendimento ao Cliente, não é um mero ajuste operacional. Trata-se de um componente estrutural do projeto de privatização concluído em julho de 2024, que transformou a maior companhia de saneamento da América Latina em uma empresa controlada por interesses privados, com a Equatorial Participações como acionista majoritária (15%). A análise crítica desse processo revela um padrão de desmonte do patrimônio público, precarização laboral e riscos à soberania hídrica paulista.
O PDV como Instrumento de Desmonte Operacional
O Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Sintaema) denuncia que o PDV atua como um “mecanismo de expurgo seletivo” de trabalhadores com conhecimento institucional crítico. A inclusão de setores como o Almoxarifado – responsável pelo controle de peças e insumos operacionais – visa eliminar profissionais que dominam a "engrenagem operacional" da Empresa, substituindo-os por terceirizados. A falsa "voluntariedade" do programa é marcada por chantagens veladas: "ou aderem agora, ou a empresa dá um jeito depois", criando um clima de coerção psicológica. Além disso, a ausência de um plano de reposição de quadros compromete a continuidade dos serviços, fragilizando áreas essenciais para a manutenção da infraestrutura hídrica.
Privatização: Vantagens Questionáveis e Impactos Concretos
A venda de 32% das ações da Sabesp por R$14,7 bilhões, em 2024, foi celebrada pelo governo estadual de Tarcísio de Freitas (Republicanos) como um “marco de eficiência”, mas os dados revelam uma subvalorização do patrimônio público: as ações foram vendidas a R$ 67 cada, enquanto seu valor de mercado era R$ 87 (e hoje atingem R$ 110). Além disso, o Estado de São Paulo, que detinha 50,3% do controle, reduziu sua participação para 18%, perdendo poder de decisão estratégica. O argumento de que a privatização atrairia investimentos maciços (R$ 70 bilhões até 2029) contrasta com a realidade pós-venda: apenas R$ 10,6 bilhões foram aplicados, concentrados em expansão de mercados, não em manutenção estrutural.
Consequências Sociais e Operacionais
As demissões em massa (dois mil trabalhadores desde 2024) e o PDV atual aceleram a terceirização, com redução de salários e direitos. Outro problema refere-se à questão do aumento das tarifas. Moradores da periferia de São Paulo reportaram aumentos abusivos nas contas (até 614%), que geraram, inclusive, pedidos de CPI na Câmara Municipal da Capital. A universalização prometida pelo Marco do Saneamento (2020) mostra-se como universalização excludente, privilegiando áreas rentáveis.
O Sintaema também alerta para o aumento das chances de acidentes ambientais. Dois grandes vazamentos de esgoto ocorridos em 2025 – um próximo à Represa do Guarapiranga, manancial vital para a Região Metropolitana de São Paulo – expõem a fragilização da operação.
A Lógica do Capital Financeiro vs. Interesse Público
A privatização da Sabesp seguiu um modelo inédito no mercado: a escolha de um "acionista primário" (Equatorial) com poder de indicar o presidente e controlar 1/3 do conselho, subordinando a gestão da água à lógica da Faria Lima. Essa financeirização ignora lições históricas, como a crise hídrica de 2014, causada por investimentos insuficientes em infraestrutura e vazamentos (20% da água tratada) – agravados pela priorização de lucros sobre manutenção. O próprio Banco Mundial adverte que subsídios mal desenhados em saneamento tendem a beneficiar elites, aprofundando desigualdades.
Água como Mercadoria ou Direito?
O PDV e a privatização da Sabesp são faces de um mesmo projeto: a “commoditização” da água, transformando um recurso essencial à vida em ativo financeiro. Enquanto a Equatorial comemora a aquisição de um monopólio garantido, trabalhadores perdem empregos estáveis, comunidades pobres enfrentam tarifas extorsivas e o patrimônio técnico acumulado em décadas é desmantelado. Como alerta o Sintaema, a resistência deve ser coletiva: só a mobilização unificada dos trabalhadores e da sociedade poderá frear esse "reposicionamento do saneamento ao sabor dos ditames da Faria Lima". A água de São Paulo merece um destino melhor: pública, universal e democrática.
Foto: Sintaema/Malu Ornelas