Não bastasse todo o sofrimento ao ser vítima de estupro e de uma gravidez indesejada em função da violência sofrida, essas mulheres serão submetidas a uma sessão de tortura, onde serão expostas, mês a mês, à exibição de imagens do desenvolvimento do feto, antes de conseguirem o direito ao aborto legal. O Projeto de Lei (PL) 1.465/2013, da deputada Celina Leão (PPS), atual Procuradora Especial da Mulher na Câmara Legislativa do DF, foi criado em 2003 e recebeu, recentemente, a aprovação da Câmara Legislativa do Distrito Federal em primeiro e segundo turno. A redação final do texto também foi acatada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), no último dia 22 de junho, e aguarda sansão do governador do Distrito Federal, Rodrigo Rollemberg (PSB-DF).
De acordo com o PL, as unidades de saúde (públicas e privadas) deverão apresentar um "programa de orientação" para as gestantes vítimas de estupro. Tal “programa” deve mostrar às gestantes as “ilustrações sobre a formação física do feto, mês a mês, bem como sua extração“, apresentar os “possíveis efeitos físicos e psíquicos que a prática do aborto pode provocar”, além de exames laboratoriais. O objetivo, segundo a autora do projeto, seria supostamente para “instruir as gestantes vítimas de estupro sobre os riscos e consequências de um aborto”. O descumprimento da “Lei” poderá acarretar multas de R$ 10 mil às unidades de saúde.
O que realmente está por trás da medida?
A justificativa de “informar” as pacientes não passa de uma mentira deslavada. Isso porque toda gestante vítima de estupro, ao procurar as unidades de saúde, deve receber atendimentos médicos, psíquicos e de assistência social, conforme determinação da norma técnica da Atenção Humanizada ao Abortamento, justamente por entender que se trata de um trauma "físico, emocional e social". A norma determina, ainda, que “nos casos de abortamento por estupro, o profissional deverá atuar como facilitador do processo de tomada de decisão, respeitando-a”.
Com relação às “imagens” do feto, trata-se de outro engodo. As vítimas, durante a assistência médica, também passam por exames ambulatoriais, incluindo a ultrassonografia para verificar o tempo gestacional. A opção de ver ou não as imagens do feto é dada à gestante. Ou seja, não há qualquer justificativa racional e técnica para a aprovação do projeto a não ser a tentativa de se fazer uma lavagem cerebral e uma sessão de tortura nas gestantes, dificultando e impedindo, na prática, o direito ao aborto legal.
Conforme destacou a pesquisadora do Instituto de Bioética (Anis), Débora Diniz, “o projeto utiliza a justificativa de que tem a função de informar a mulher apenas como subterfúgio para um adorno ideológico. (...) Todo o projeto é uma tentativa de levar a mulher a outra coisa que não seja o aborto”. A pesquisadora afirmou ainda que “a abordagem possui um ímpeto de tortura ao submeter a mulher a uma prática compulsória em um momento de extremo sofrimento. (...) O projeto ignora quem é a mulher, que a ultrassonografia é parte do protocolo e ignora a vontade dela naquele momento. O que há de novo é a compulsoriedade dessa ação, ou seja, submeter a mulher a uma sessão de tortura em nome de um cuidado extremamente violento”.
Já a presidenta da Anis, Vanessa Dios, afirma que a medida é “mais uma violência para a mulher que já está sofrendo. É quase uma sessão de tortura. Vai mostrar como o feto está no período gestacional dela? Não faz sentido nenhum para uma mulher que não quer levar adiante a gestação. Isso seria quase uma tentativa de convencimento de que esta mulher está fazendo algo errado, se a medida vigorar.”
Direita investindo contra os direitos democráticos das mulheres
O objetivo de submeter as vítimas de estupro à sessões de tortura faz parte de toda uma campanha da direita para retirar os mínimos direitos democráticos das mulheres. O que se pretende, na verdade, é acabar de vez com o direito ao aborto para as mulheres trabalhadoras, retroceder mesmo nos casos em que a prática é garantida por lei, assegurada pela Constituição, como nos casos de estupro ou em gestações que gerem risco à mãe.
Não por acaso, o Projeto de Lei que determina a sessão de tortura foi aprovado quase um mês depois de a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 29/2015 avançar em Brasília. O Projeto, que já recebeu parecer favorável do senador Eduardo Amorim (PSDB/SE), na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado e aguarda aprovação do plenário, propõe alterar a Constituição para que o direito à vida “desde a concepção” seja garantido. Ou seja, impedir o aborto desde o momento em que o espermatozoide fecunda o óvulo. Isso significaria, por exemplo, que nem mesmo a chamada “pílula do dia seguinte” poderia ser usada. Vale ressaltar que para a literatura médica, a possibilidade de gerar vida humana só ocorre quando o óvulo é implantado no útero e não quando é fecundado.
PEC 29/2015: a volta à Idade das Trevas
A PEC 29/2015 prevê uma perigosa alteração no artigo 5° da Constituição, que atualmente diz: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes...”. Com a mudança, passaria para a seguinte redação: “garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito a vida desde a concepção...”. Ou seja, todos os tipos de aborto, inclusive os que já são assegurados por lei, seriam inconstitucionais e, portanto, proibidos.
Não só isso. Caso aprovado, a PEC 29/2015 ameaça, inclusive, os tratamentos de fertilização in vitro e as pesquisas com células-tronco embrionárias.
Com base em novas interpretações geradas por essa Lei, ao considerar que todo óvulo fecundado é uma vida, aqueles que estão congelados em clínicas de reprodução assistida deverão ter seus direitos preservados por Lei. Uma verdadeira aberração, para não dizer uma volta à época das trevas, quando a evolução científica e tecnológica era considerada anomalias.
Como se vê, o que está em jogo não é, nem de longe, qualquer “preocupação” com as mulheres, muito menos com os “fetos”. Se esse fosse de fato o problema, ao invés de medidas repressivas, o mínimo a se fazer seria investir na segurança e saúde. Por exemplo, ao invés de torturar as gestantes vítimas de estupro, o Estado deveria investir no combate aos crimes sexuais – lembrando que 75% dos casos são cometidos por familiares ou pessoas próximas.
A questão da maternidade está sendo utilizada como forma de reprimir e atacar as mulheres – seja para mandá-las para a cadeia ou para manter essa importante parcela da classe operária presa aos serviços domésticos e impossibilitada de lutar contra a investida da direita.