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“O Comunismo e a Família” - Alexandra Kollontai – Parte I

Começaremos, a partir dessa edição, um debate sobre a questão da mulher e da organização familiar no capitalismo e no Estado Comunista. Usaremos para essa discussão o texto “O Comunismo e a Família”, de Alexandra Kollontai, publicado em 1920. Kollontai participou ativamente na luta do Partido Bolchevique pela conquista do poder na Revolução russa de 1917. Foi delegada do Soviete de Petrogrado, onde organizou o I Congresso das Mulheres Operárias. Após a Revolução de Outubro, foi Comissária do Povo do Bem Estar Social no Estado Soviético e participou da elaboração da mais avançada legislação em favor dos direitos da mulher em toda a história mundial.

Tal documento será apresentado, na íntegra, mas dividido em várias partes. 


"A mulher já não depende do homem" 

Se manterá a família em um Estado comunista? Persistirá na mesma forma atual? São estas questões que atormentam, nesse momento, à mulher trabalhadora e a seus companheiros, os homens.

Não devemos achar estranho que nesses últimos tempos este problema perturbe a mente das mulheres trabalhadoras. A vida muda continuamente diante de nossos olhos; antigos hábitos e costumes desaparecem pouco a pouco. Toda a existência da família proletária se modifica e se organiza de uma forma tão nova, tão fora do comum, tão estranha, como nunca pudemos imaginar.

E uma das coisas que mais causa perplexidade na mulher, nesses momentos, é a maneira como foi facilitado o divórcio.

De fato, em virtude do decreto do Comissário do Povo de 18 de dezembro de 1917, o divórcio deixou de ser um privilégio acessível somente aos ricos; de agora em diante, a mulher trabalhadora não terá que esperar meses e, inclusive, até anos para que seja julgado seu pedido de separação matrimonial que dê a ela o direito de separar-se de um marido alcoólatra ou violento, acostumado a espancá-la. De agora em diante poderá se obter o divórcio amigavelmente dentro do período de uma ou duas semanas, no máximo.

Porém, é precisamente esta facilidade para obter o divorcio, fonte de tantas esperanças para as mulheres que são desgraçadas em seu matrimônio, o que assusta outras mulheres, particularmente aquelas que consideram o marido como o ‘provedor’ da família, como o único sustento da vida, a essas mulheres que não compreendem que devem acostumar-se a buscar e a encontrar esse sustento em outro lugar, não na pessoa do homem, mas sim na pessoa da sociedade, do Estado.


Da família gentílica aos nossos dias 


Não há nenhuma razão para nos enganarmos: a família normal dos tempos passados na qual o homem era tudo e a mulher era nada - posto que não tinha vontade própria, nem tempo do qual dispor livremente-, este tipo de família sofre modificações dia a dia, e atualmente é quase uma coisa do passado, o qual não deve nos assustar.

Seja por erro ou ignorância, estamos dispostos a crer que tudo o que nos rodeia deve permanecer imutável, enquanto tudo o mais muda. Sempre foi assim e sempre será. Esta afirmação é um erro profundo.

Para nos dar conta de sua falsidade, não precisamos mais que observar como viviam os povos do passado e, imediatamente, vemos como tudo está sujeito à mudança e como não há costumes, nem organizações políticas, nem moral que permaneçam fixas e invioláveis.

Assim, portanto, a família tem mudado frequentemente de forma nas diversas épocas da vida da humanidade.

Houve épocas em que a família foi completamente diferente de como estamos acostumados a admiti-la. Houve um tempo em que a única forma de família que se considerava normal era a chamada família genésica, aquela em que a cabeça da família era a mãe-anciã, em torno da qual se agrupavam, na vida e no trabalho comum, os filhos, netos e bisnetos.

A família patriarcal foi em outros tempos considerada também como a única forma possível de família, presidida por um pai-amo, cuja vontade era lei para todos os demais membros da família. Ainda em nossos tempos se pode encontrar nas aldeias russas, famílias camponesas deste tipo. Na realidade, podemos afirmar que nesses locais a moral e as leis que regem a vida familiar são completamente diferentes das que regulamentam a vida da família do operário da cidade. No campo existe, todavia, grande número de costumes que já não é possível encontrar na família da cidade proletária.

O tipo de família, seus costumes, etc., varia segundo as raças. Há povos, como, por exemplo, os turcos, árabes e persas, entre os quais a lei autoriza o marido a ter várias mulheres. Existiram e, todavia, se encontram tribos que toleram o costume contrário, quer dizer, que a mulher tenha vários maridos.

A moral a serviço do homem atual o autoriza exigir das jovens a virgindade até seu casamento legítimo. Porém, não obstante, há tribos em que ocorreu o contrário: a mulher tem orgulho de ter tido muitos amantes e enfeita braços e pernas com braceletes que indicam o número...

Diversos costumes, que a nós nos surpreendem, hábitos que podemos, inclusive, qualificar de imorais, outros povos o praticam, como a sanção divina, enquanto que, por sua parte, qualificam de ‘pecaminosos’ muitos de nossos costumes e leis.

Portanto, não há nenhuma razão para que nos aterrorizemos diante do fato de que a família sofra uma mudança, porque gradualmente se descartem vestígios do passado vividos até agora, nem porque se implantam novas relações entre o homem e a mulher. Não temos mais que nos perguntar: ‘o que morreu em nosso velho sistema familiar e que relações há entre o homem trabalhador e a mulher trabalhadora, entre o camponês e a camponesa?’

Quais de seus respectivos direitos e deveres se encaixam melhor nas condições de vida da nova Rússia? Tudo o que seja compatível com o novo estado de coisas se manterá; o restante, toda essa bagagem antiquada que herdamos da maldita época de servidão e dominação, que era a característica dos latifundiários e capitalistas, tudo isso terá que ser varrido juntamente com a mesma classe exploradora, com esses inimigos do proletariado e dos pobres.


 O capitalismo destruiu a velha vida familiar 


A família, em sua forma atual, não é mais que uma das tantas heranças do passado. Solidamente unida, compacta em si mesma em seus começos, e indissolúvel - tal era o caráter do matrimônio santífico pela cura -, a família era igualmente necessária para cada um de seus membros. Porque, quem trataria de criar, vestir e educar os filhos se não fosse a família? Quem os guiaria na vida? Triste sorte a dos órfãos naqueles tempos; era o pior destino que alguém poderia ter.

No tipo de família a que estamos acostumados, o marido é quem ganha o sustento, que mantém a mulher e os filhos. A mulher, por sua parte, se ocupa dos afazeres domésticos e de criar os filhos.

Porém, desde há um século, esta forma corrente de família experimentou uma destruição progressiva em todos os países do mundo, nos que o capitalismo domina, naqueles países em que o número de fábricas cresce rapidamente, juntamente com outras empresas capitalistas que empregam trabalhadores.

Os costumes e a moral familiar se formam simultaneamente como consequência das condições gerais da vida que rodeia a família. O que mais contribuiu para que se modificassem os costumes familiares de uma maneira radical foi, indiscutivelmente, a enorme expansão que adquiriu por toda parte o trabalho assalariado da mulher. Anteriormente, o homem era a única possibilidade de sustento da família. Porém, desde os últimos cinquenta ou sessenta anos, temos visto na Rússia (com anterioridade em outros países) que o regime capitalista obriga as mulheres a buscar trabalho remunerado fora da família, fora de casa” (...).



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