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Rodolfo Quintero e a Cultura do Petróleo na Venezuela

Por Luís César Nunes

(Educação-RJ)


Introdução


A Venezuela é sem dúvida o centro das preocupações do movimento operário e sindical. Isso porque os governos fantoches da região estão cada vez mais cedendo às iniciativas do imperialismo. A saída em bloco da UNASUL dos governos de direita da América do Sul mostra o poder de pressão que os Estados Unidos exercem na região. Todas as sanções comerciais e financeiras já aplicadas e também o próprio bloqueio de alternativas como o Petro, além da já habitual propaganda midiática e o boicote eleitoral direitista, mostram claramente a política de mudança de regime que confirma o que preconizou o secretário de Estado, RexTyllerson, quando sugeriu um golpe militar na Venezuela. Posteriormente, o secretário foi substituído por Mick Pompeo, um diretor da CIA e deputado do TeaParty, ala mais à direita do Partido Republicano . Tantos anos de afastamento da política continental tornam difícil a compreensão do processo pela militância de esquerda brasileira. O Brasil atlantista tem como um traço cultural justamente ignorar o que se passa nos países vizinhos. As tentativas de estabelecer contato, tanto pelo incremento do comércio como pelo ensino do espanhol, foram subitamente abortadas pelo governo golpista interessado numa reedição da ALCA que foi interrompida com a integração iniciada nos governos de centro-esquerda que assumiram o poder na última década. Porém, desde então e com a crise econômica do imperialismo iniciada em 2008, o imperialismo norte-americano não tem deixado de incentivar movimentos de mudança de regime e intervenções bélicas, como a que se produziu na Líbia e agora na Síria. Essas intervenções que usam a máscara democrática e do combate à corrupção mal disfarçam os objetivos neocoloniais. Obviamente isso não é novo e os Estados Unidos já desde o século XIX confeccionou a Doutrina Monroe para impor seu domínio continental. A classe dominante brasileira sempre cooperativa com isso tratou de produzir essa indiferença pelos problemas sul-americanos. Assim, o desconhecimento de tudo que provém do país vizinho é a nota comum e isso não apenas no âmbito gera, mas inclusive na própria cultura da esquerda.  


Apresentação de Rodolfo Quintero


Quantos ouviram falar da obra de Rodolfo Quintero? Membro da geração de 1928, a história de Quintero confunde-se com a emergência do movimento operário venezuelano. Foi dos primeiros a organizar clandestinamente o Partido Comunista da Venezuela (PCV) e o primeiro sindicato de trabalhadores do petróleo na Venezuela (SAMOP). Fugiu das prisões do ditador Gomez e exilado na Colômbia por ter chamado uma greve nacional, a "greve de junho" contra a "Lei Lara", em setembro de 1936. Quando retornou à Venezuela, organizou uma campanha para tornar o 1º de maio o dia autêntico dos trabalhadores. Em 1944, fundou uma fachada legal do Partido Comunista da Venezuela, chamada de União Popular Venezuelana derrotando Rómulo Betancourt e seu partido Ação Democrática. No mesmo ano, realizou-se o II Congresso da Confederação dos Trabalhadores da América Latina (CTAL), na Colômbia. Só em 1945, conseguiu-se estabelecer o 1º de maio como o “Dia do Trabalho na Venezuela”. Em 1945, após uma série de diferenças ideológicas com a política de conciliação de classes no interior do PCV, fundou o Partido Revolucionário do Proletariado (PRP) que foi um dos principais organizadores da greve de 1950. Porém, a repressão se abate sobre o movimento e seus líderes são presos e alguns, inclusive Quintero, são expulsos do país. Quintero vai para o México e consegue formar-se na UNAM, obtendo o título de sociólogo e arqueólogo. Em 1958, cria-se o Comitê Sindical Nacional Unificado (CNSU). No entanto, nesse mesmo ano, em reação, faz-se o Acordo do Punto Fijo entre AD, COPEI e URD, cujos pontos são: 1) Defesa da constitucionalidade e o direito de governar de acordo com o resultado eleitoral. 2) Governo da Unidade Nacional. Em 1959,acontece o III congresso do CTV, causa das divisões posteriores no movimento sindical que passou, desde 1960,a ser tomado por bandas sindicalistas armadas da Ação Democrática, dirigidas por Hugo Soto Socorro, conhecido como "Sotopoles" que tentaram assassinar Rodolfo Quintero. Desde então houve a expulsão de comunistas e miristas (militantes do MIR) da central sindical. Por isso, em 1963, reuniu-se o IV que foi chamado assim por conta da fraude da expulsão feita num suposto IV Congresso (chamado para o chamado Pacto La Guanabara, branco e verde que incluía a expulsão da esquerda). Assim foi fundada a Confederação Central de Trabalhadores da Venezuela (CUTV), da qual Rodolfo Quintero foi um dos secretários Nacionais. 


Contribuição de Quintero para a interpretação da realidade venezuelana


A obra de Quintero não se limita ao seu aspecto dirigente. Na verdade, também tornou-se um elaborador e intérprete da realidade venezuelana. É dele a importante obra: “A cultura do petróleo. Ensaio sobre estilos de vida de grupos sociais na Venezuela”  . Diz ali: “Colonialistas modernos com conhecimento das técnicas avançadas de exploração de petróleo, dominaram em nosso país os agricultores de tecnologia retrógrada. A tecnoculturação é um aspecto do processo de transculturação que impulsiona o progresso técnico sem garantir o progresso social em todos os casos. Os avanços técnicos influenciam o desenvolvimento da sociedade de acordo com o regime social vigente. A história humana mostra que os avanços tecnológicos podem ser refletidos tanto nos benefícios quanto nos danos aos grupos em que ocorrem, de acordo com os usos que são dados”. Para Quintero, o petróleo que a Venezuela desmantelou a cultura rural-agrária. Outro aspecto é que a própria formação da classe operária já obedece uma aristocratização que influencia no tipo de sindicato que seriam posteriormente dominados pela AD: “Os planos de aristocratização são bem sucedidos em algumas camadas de trabalhadores do petróleo. Mas não conseguem formar uma aristocracia laboral semelhante à que existe nos países de grande desenvolvimento; em seu lugar surgem os ‘funcionários da confiança’ ligados à burocracia estatal. A indústria do petróleo é um ambiente fértil para o florescimento da burocracia do trabalho; Os burocratas são os gerentes dos sindicatos viciados no governo e nas empresas. Homens marginalizados do processo de produção de petróleo (porque nunca se ligaram a ele) ou estavam lá há muitos anos, que agora ‘representam’ os trabalhadores e, em seu nome, assinam contratos anti-sindicais com os trabalhadores”.

E continua: “As empresas, com a colaboração dos burocratas, amarraram os trabalhadores com a assinatura do primeiro contrato de trabalho do setor, em 1946, e garantiram a ‘paz trabalhista’ por três anos. Uma vez que esta situação é criada, eles descartam qualquer oposição por parte dos trabalhadores e empregados, porque o contrato não garante nada em termos de estabilidade e, ao invés disso, congela os salários enquanto o custo de vida aumenta verticalmente. O recrutamento possibilita que as empresas configurem sistemas de trabalho sem causar conflitos. Faz com que os trabalhadores produzam mais, de acordo com as demandas dos mercados mundiais, e favorecem a programação de ações voltadas para a divisão das classes de trabalhadores e sua domesticação por meio da violência ou do suborno”. 

“O surgimento do bandido sindical marca em nosso país o início de um período difícil e sangrento do movimento trabalhista, dias em que muitos trabalhadores morrem e os sindicatos ‘se sentam’ com a presença no local da temível ‘Segurança Nacional’ e funcionários do Ministério do Trabalho. O gangsterismo causa mudanças quantitativas e qualitativas do grupo social dos petroleiros; suas tropas mais antigas são eliminadas e seus postos ocupados por recém-chegados aos campos, cuidadosamente escolhidos pela polícia privada das empresas. Os trabalhadores veteranos do petróleo têm de se tornar parte de outros destacamentos da classe trabalhadora nacional; eles se tornam motoristas quadrados, pequenos comerciantes, trabalhadores da construção civil ou desaparecem na dimensão indefinida do desclassificado”.

“O gangsterismo é feito sistema. Eliminar os aparatos de reforma e corrupção montados pela ação democrática, porque são desnecessários. Agora, o trabalhador consciente é perseguido sem contemplações ou dissimulação, ele é marginalizado da atividade sindical e política. Há um novo modelo de ‘líder sindical’ que não é oportunista, mas criminoso, não é um traidor da classe trabalhadora porque nunca teve nada a ver com isso, não é reformador porque não tem interesse em reformar, mas em manter regime militarista. Ele é um mercenário pago pelos militares e empresas”.

A dependência do petróleo e o novo modelo de acumulação econômica não trouxe um modelo diversificado. Na prática, ele produziu um modelo cultural antagônico, contraditório e dependente de padrões culturais estrangeiros, uma expressão de uma cultura colonizadora, como diz Pedro Rodríguez Rojas. Essa aculturação pode ser medida nessa citação do famoso livro “A cultura do petróleo. Ensaio sobre estilos de vida de grupos sociais na Venezuela”:  “Ao mesmo tempo, desenvolvem programas habitacionais, abrem escolas para os filhos dos trabalhadores, reformam os clubes, constroem parques, campos de beisebol. Promovem associações de bem-estar social e aculturação, fazem planos familiares de ajuda e orientação à mulher como indivíduo da comunidade do campo petrolífero. Organização de campos esportivos, iniciar cursos de segurança industrial, viagens, excursões. Nesse ambiente, o novo trabalhador não encontra quem ele quer ou odeia, ele não sabe onde estão seus amigos e onde estão seus inimigos, não tem motivos para se rebelar e motivos para se sentir satisfeito. Pense com ideias gerais. Preencha seu tempo livre com planos implementados por uma rede de funcionários visíveis e invisíveis cuja função é alienar o lazer do pessoal das empresas”.

“No entanto, a cultura do petróleo não se torna muito profunda, é bastante superficial: entre os que vivem nela há lacunas e sofrimentos; não fornece satisfações suficientes, estimula a desconfiança e aumenta a impotência e o isolamento. A cultura do petróleo é primeiro imposta e, depois, aprendida. Todo homem é um ser histórico e a cultura da qual ele faz parte muda com o tempo. O trabalhador do petróleo é um ser histórico e a cultura do petróleo tem que mudar com o tempo, desaparecer.

Os economistas clássicos cometeram o erro de reduzir os limites da ciência econômica a uma simples crematística, isto é, a uma ciência das coisas, das riquezas, incorrendo, como os marxistas assinalam, no ‘fetichismo das mercadorias’. Mas o fato econômico transcende além das coisas; não pode ser reduzido a relações entre mercadorias ou entre homens e mercadorias. O fator econômico que atua na transformação das antigas cidades petrolíferas em cidades nacionais inclui o homem como um todo, homem cujas raízes profundas são sustentadas e desenvolvidas no mundo social que o rodeia”.

O livro, segundo Enrique Nóbrega, descreve e interpreta criticamente as transformações sofridas pela sociedade venezuelana desde o início de exploração do petróleo. Além disso, a constituição de uma verdadeira “civilização gringa” dão a mostra do profundo significado do surgimento de um movimento nacionalista na Venezuela: “Entre os principais aspectos culturais da descolonização estão: 1) a reconstrução da autonomia cultural da Venezuela; 2) a cicatrização do trauma produzido pela colonização (cultura do óleo); 3) a luta pela independência, transformando a doutrina cultural e antropológica em um programa político concreto de reivindicação de signo”.

“Sem dúvida, a razão mais profunda para o ressentimento do povo da Venezuela em relação à cultura do petróleo está na qualificação da cultura nacional de inexistente ou, pelo menos, retrógrada. O nacionalismo é em nosso país o motor da revolução anticolonial, da ação coletiva contra a cultura do petróleo. A descolonização, como fenômeno revelado quando se luta pela subtração do poder da cultura do petróleo, não é apenas uma operação política, é também uma grande gestão antropológica que se dá numa escala até então desconhecida na história. Porque, em primeiro lugar, há tensões entre a demanda por detalhes e a elaboração de uma doutrina que a afirma: a da personalidade do venezuelano”.

“As novas formas de educação são sugeridas pela moda em que as academias estão com oficinas comerciais, a ênfase em aprender inglês e a educação precoce de crianças em instituições nos Estados Unidos, são sinais de falta de confiança as instituições nacionais merecem como meio de preparação para fins práticos de interesse para os pais. O avanço da ‘civilização gringa’ é caracterizado por seu senso eminentemente prático e o ritmo rápido em que é realizado”.

“A ‘civilização gringo’ tem sua base principal em técnicas surgidas e desenvolvidas nos Estados Unidos e, como foi dito, uma de suas expressões é a cultura do petróleo. Introduz na vida de nosso país uma ferramenta tecnológica que eles usam para a transformação do ambiente físico e a criação de novos ambientes onde possam satisfazer suas necessidades. As alterações impactam de uma forma ou de outra em diferentes esferas da vida social. As mudanças tecnológicas produzem atitudes de rejeição ou aceitação. A resistência cria problemas que se manifestam em diferentes setores da vida na sociedade. Na Venezuela, o progresso tecnológico, devido às suas características, afeta o crescimento das cidades; não é o resultado de ações conscientes destinadas a quebrar esquemas tradicionais, mas o efeito da importação de técnicas estranhas”.

“Lutar contra a hegemonia da cultura do petróleo, que é um aspecto da ‘civilização gringa’, é fazê-lo pela liberdade do homem crioulo, concebido como a consciência da necessidade. E se a liberdade é a consciência da necessidade, cada passo de nossa população para o enriquecimento das culturas nacionais, segredos da natureza, dá a medida de sua liberdade e, consequentemente, a medida do progresso do país”.


Conclusão


Na verdade, a tarefa de rompimento com essa cultura do petróleo e com a “civilização gringa” ainda está em curso. A monodependência do petróleo e a ligação umbilical da classe média com a cultura norte-americana se fazem ainda muito presente. O bolivarianismo surgido depois dos chamados governos de Andrés Perez interrompido pelo Caracazo inaugurou um novo período no país. Compreender as causas e circunstâncias desse processo é fundamental para lutar pela libertação não só da Venezuela, mas de todo a América do Sul. Seguindo Marx, os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo, cabe agora transformá-lo. A práxis de Quintero mostra que é um caminho perfeitamente possível refletir e agir. No dizer de Ricoeur , “para transformar é preciso também interpretar”.


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