• Entrar
logo

Estado obriga esterilização de moradora de rua

Uma denúncia feita pelo professor da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas, Oscar Vilhena Vieira, chamou atenção. Em um artigo publicado no jornal “Folha de São Paulo”, o docente expôs o caso de Janaína Aparecida Quirino, uma moradora de rua que foi submetida, sem seu consentimento e sem o direito a defesa, a um procedimento cirúrgico de esterilização. A vítima não teve sequer direito a audiência ou a advogado de defesa – ela foi conduzida coercitivamente à cirurgia de ligadura das trompas. O caso ocorreu na cidade de Mococa, em São Paulo

O caso, que ocorreu em outubro de 2017, é uma aberração que demonstra o quanto a direita está avançando contra os direitos dos mais pobres. Segundo Oscar Vilhena, “Como Janaína é pobre, vive em situação de rua, dependente química, um membro do Ministério Público entendeu que ela deveria ser esterilizada. Ela foi ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) para retirar todos os pedidos de exames agendados com essa finalidade. Foi quando o juiz ordenou a condução coercitiva. Quando o recurso do município chegou ao Tribunal de Justiça de São Paulo, a mutilação já havia ocorrido”.

A ação foi repudiada pelo Instituto de Garantias Penais (IGP), que soltou uma nota condenando a intervenção: “Nosso ordenamento jurídico repudia que a pessoa seja obrigada a se submeter à esterilização. Cirurgia invasiva desautorizada não é cirurgia: é lesão irreversível à integridade física” (grifo nosso). O IGP também denunciou que essa não é uma medida isolada. “É de Janaínas cotidianas que se alimenta o jacobinismo togado, adubado pelo afã do Ministério Público, que assola o país. A sociedade tem amargado sucessivos desrespeitos às garantias fundamentais embaixo do próprio nariz, e sua gravidade crescente impossibilita sabermos onde esse momento crítico aterrissará”.

Em seu artigo, o professor Oscar Vilhena ressaltou que apesar de a Ação Civil Pública ser “um instrumento voltado à proteção de direitos difusos, coletivos e individuais indisponíveis”, no caso da moradora de rua, a promotoria utilizou-se desse artifício jurídico “para destituir uma pessoa de seu direito à dignidade e à integridade (...)”. Vale destacar que de acordo com a Constituição, o Estado não pode interferir coercitivamente na decisão de uma pessoa de ter ou não filhos, conforme o Art. 226, parágrafo. 7° da Constituição Federal. A condução coercitiva é uma medida excepcional, utilizada apenas para casos de testemunhas ou acusados que se neguem a atender uma intimação.

Já o professor e jurista, Pedro Serrano, afirma que a petição de esterilização de Janaína é um “pedido juridicamente impossível”, já que “a lei proíbe expressamente esse tipo de laqueadura forçada, como foi feito”. Avalia ainda que mesmo quando se trata de uma decisão voluntária, o procedimento cirúrgico de esterilização é legalmente restrito e que a autorização deve ser segura. No caso de Janaína, além de moradora de rua, ela é dependente química e, como tal, é considerada, legalmente, como uma pessoa que não está no exercício pleno de sua consciência, portanto, deveria receber cuidados do Estado e não ser tratada como mero objeto, como ocorreu. “Ela não foi tratada como um ser humano que sofre um processo, mas como objeto, já que o promotor não moveu um processo contra ela, mas contra o município, pedindo que fosse determinado que a prefeitura realizasse a laqueadura com ou sem o consentimento dela”. Serrano avalia que “essa é a decisão da Justiça brasileira que mais se aproxima com o que se fazia na época do nazifacismo. É o tratamento do ser humano como ser não humano”.  Oscar Vieira também ressalta que a esterilização compulsória já foi usada em outros momentos e países com finalidade de controle racial e social da população. “A esterilização coercitiva, com finalidades eugênicas e apuração da raça, foi largamente empregada pelo regime nazista. (...) Os Estados Unidos a empregavam para punir criminosos. Mesmo no Brasil, como foi apontado por uma comissão parlamentar de inquérito, ainda em 1991, havia tolerância com políticas de esterilização coercitiva em massa, com finalidades demográficas”.

De acordo com a Constituição brasileira, Lei Federal n° 9263/96, art.10, a esterilização só pode ser feita mediante “registro de expressa manifestação da vontade em documento escrito e firmado”. É proibida “a esterilização em mulher durante períodos de parto ou aborto, exceto em casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores”. E, desconsidera manifestação de vontade expressa em situações de “ocorrência de alterações na capacidade de discernimento por influência de álcool, drogas, estados emocionais alterados ou incapacidade mental temporária ou permanente”. Já o art. 15 prevê que o descumprimento ocasiona pena de dois anos de reclusão ou multa. Sendo assim, a esterilização de Janaína ocorreu de forma absolutamente contrária à lei, já que foi feita imediatamente após o parto, não teve sua expressa concordância e, mesmo que houvesse, não poderia ser considerada diante da situação de Janaína (usuária de drogas). Se as leis efetivamente valessem, tanto o juiz quanto o promotor deveriam ser responsabilizados, inclusive criminalmente.

O caso também chama atenção pelo mau-caratismo dos argumentos utilizados para a realização do procedimento, uma suposta preocupação com a vida e integridade física de Janaína e de seus filhos. Segundo o promotor de Justiça, Frederico Liserre Barruffini, “Somente a realização da laqueadura tubária será eficaz para salvaguardar a sua vida, sua integridade física e a de eventuais rebentos que poderiam vir a nascer e ser colocados em sério risco pelo comportamento destrutivo da mãe”. O promotor argumenta ainda que a situação social e econômica de Janaína justificaria a ação da promotoria. Assim, a vítima, por ser moradora de rua e mãe de cinco filhos, “não demonstra discernimento para avaliar as consequências de uma gestação”, cabendo ao município realizar a esterilização para evitar riscos aos filhos.

O argumento não passa de um cinismo. A suposta preocupação com os moradores de rua é simplesmente inexistente. Não por acaso, dada a enorme crise capitalista, a cada dia o número de famílias que passam a viver nas ruas só aumenta e não há nenhuma política do Estado para dar condições dignas de moradia e subsistência a essas pessoas, muito pelo contrário. O Estado utiliza-se da força de repressão para retirar essas famílias das ocupações de imóveis que poderiam lhes servir de moradia, mesmo sabendo que ao fazer isso, o que resta é retornar às ruas, já que os abrigos públicos não atendem nem de longe a demanda. Também não há nenhum programa de atendimento e tratamento a dependentes químicos, mesmo sendo esse um problema reconhecidamente de saúde pública. Tampouco há a preocupação com as milhares de crianças pobres, pois as creches e escolas não são suficientes para que essas crianças possam estar seguras e recebendo educação. Isso sem falar na saúde pública, um dos setores mais atacados pelos governos burgueses. Não é incomum as notícias de crianças, sempre negras e pobres, mortas pela polícia. Na verdade, sempre que os órgãos do Estado utilizam o argumento de “preocupação com a vida” e integridade física de pessoas pobres além de demagogia, é pura hipocrisia. O Estado é o primeiro a promover o genocídio dessas pessoas, numa evidente política de “limpeza social”. Em São Paulo, no ano passado, o prefeito da cidade, João Doria (PSDB), chegou ao absurdo de acordar moradores de rua com jatos de água, em meio às noites mais frias do ano.

No caso de Janaína, não foi oferecido a ela nenhum tipo de tratamento ou condições de melhoria de vida. Nem mesmo a um defensor público para representá-la. “O juiz não fez audiência, não nomeou um defensor e não pediu documentos que mostrassem que ocorreu consentimento por parte da mulher, que tem filhos. Apenas determinou a condução coercitiva para a operação” (Pragmatismo Político).

O caso de Janaína reflete claramente a direitização do sistema e um forte ataque aos direitos das mulheres, em especial das mais pobres. A direita avança de forma feroz contra essa parcela majoritária da sociedade, com o intuito claro de silencia-las. A maternidade tem sido utilizada como instrumento para criminalizar ainda mais as mulheres, ora usando como forma de mantê-las presas a escravidão domésticas, já que na sociedade capitalista os cuidados com os filhos são de responsabilidade única das mães; ora prendendo-as por optar a não levar uma gestação adiante, sendo que o Estado não oferece recursos para que essas mães possam criar seus filhos e, agora, submetendo-as à procedimentos médicos de intervenção cirúrgica sem autorização, retirando qualquer controle ou domínio sobre seu próprio corpo, chegando ao ponto de utilizarem de leis que deviam protegê-las para tirar-lhes até o mínimo de dignidade.

Diante de tantos ataques, a esquerda pequeno burguesa permanece em silêncio com sua política capituladora. Nenhuma palavra é dita diante dessa investida contra as mulheres pobres, quando a crise se assevera e o ataque aos trabalhadores avança.

É preciso que se denuncie toda e qualquer mínima agressão aos direitos democráticos da população. No entanto, é preciso ter claro que o sistema capitalista é incapaz de solucionar até mesmo essas questões menores e que somente a evolução do sistema social vigente, uma revolução social, poderá garantir uma real igualdade.


Notícias relacionandas


Topo