*Por Maria Rosaria Barbato (Professora da Faculdade de Direito da UFMG e vice-presidenta do Sindicatos dos Professores em Universidades Federais de Belo Horizonte, Montes Claros e Ouro Branco – APUBH).
Na eterna tensão entre capital e trabalho, é preciso reconhecer ao sindicato o papel fundamental de ator responsável pela melhoria das condições de trabalho obreiras, pois é pela mão dos próprios oprimidos e de suas lutas, travadas por suas entidades representativas, que se cria, implementa-se e se efetiva o próprio Direito do Trabalho. É justamente em razão das pressões exercidas pelo movimento sindical que foi possível a incorporação e o reconhecimento de direitos e de garantias fundamentais dos trabalhadores na Constituição da República de 1988, em 34 incisos do art. 7º.
Imprescindível, ao longo da história, o papel político do movimento sindical, na luta pela redemocratização do País e sua participação nas discussões de grandes temas nacionais.
O bom êxito das negociações e a atuação sindical, em geral, requerem a disponibilidade de recursos para implementar políticas de defesa dos interesses e dos direitos de seus representados, contrapor-se ao poder das corporações empresariais, impor-se ao Estado e à sociedade. Foi por esta razão que o legislador constituinte reconheceu e legitimou, no art. 8º da Constituição da República de 1988, o desconto em folha da contribuição confederativa, “independentemente da contribuição prevista em lei”, encontrando esta última, mais conhecida como contribuição sindical, respaldo constitucional.
A previsão de uma contribuição obrigatória para todos os integrantes da categoria (considerada um tributo parafiscal, independente de filiação ao sindicato) tornou-se por um lado instrumento de fortalecimento do trabalho diário de defesa da parte estruturalmente mais fraca da relação, pois permitiu um financiamento indistinto, independente de filiação, por parte de todos os beneficiários do bom êxito das negociações inclusive de quem, por razões variadas, se mantinha afastado do movimento sindical; por outro lado gerou distorções à luz do princípio da unicidade, favorecendo a proliferação de sindicatos de gaveta e não-atuantes, alimentando um oportuno debate acerca da necessidade de se rediscutir a compulsoriedade e a própria liberdade sindical.
O projeto neoliberal de desmonte de direitos trabalhistas no Brasil, dentro de um projeto maior de hegemonia da lógica de mercado imposta através da austeridade e de medidas altamente antidemocráticas, alcança sua apoteose com a Lei 13.467/2017 (mais conhecida como Reforma Trabalhista) que contemplou, em âmbitos augustos, a limitação da atuação sindical.
A Lei nº 13.467/2017 alterou inúmeros dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), com impacto direto na vida dos trabalhadores e de suas entidades representativas. A exigência de prévia e expressa autorização do obreiro para desconto relativo à contribuição sindical, retirando o caráter compulsório do tributo, talvez tenha sido uma das mais nocivas à sobrevivência dos sindicatos, esvaziando-lhe a principal fonte de arrecadação para custeio de atividades e assistência à categoria, prejudicando o cumprimento das obrigações não apenas perante seus associados, mas também perante terceiros. A legislação carece de previsão de uma forma alternativa de custeio. Faltou o diálogo com a sociedade civil e as instâncias representativas dos trabalhadores para discutirem conjuntamente a reforma da disciplina da unicidade sindical. Também não se pensou na necessidade de introduzir medidas de repressão de condutas antissindicais, e, por fim, faltou a previsão de uma fase transitória que permitisse aos sindicatos se reorganizarem e se reinventarem.
O que se pretende é, sob a ameaça disfarçada de previsíveis retaliações empresariais, de chantagens, de assédio, e com o espectro do desemprego e dos contratos precários, manter o trabalhador distanciado de sua instância representativa, ulteriormente desmoralizada pela ampliação legislativa de sua atuação nas possibilidades de redução de direitos (pela via da negociação coletiva e até por efeito de ajustes individuais) e pela redução de sua atuação nas situações de preservação. O Sindicato poderá contar apenas com a contribuição dos companheiros mais impávidos, no entanto, deverá se engenhar, desperdiçando energias para além do seu foco na busca de soluções para custear a sua estrutura, organização e luta.
A Reforma, nas palavras fetichizadas de seus relatores Rogério Marinho e Ricardo Ferraço, na Câmara e no Senado, respetivamente, seria condição e pressuposto para o fortalecimento dos sindicatos, contudo, representa uma eutanásia para as associações obreiras. O sindicato sai, pelo menos formalmente, vencido na sua capacidade de unificação, empobrecido na sua função organizativa e contratual e mutilado na dimensão da solidariedade coletiva, tornando-se um sindicato de exceção a serviço de um Direito do Trabalho de exceção, com escassa capacidade de pressão e baixa credibilidade.
A reação das federações e confederações, organizada em frentes múltiplas, não tardou a ocorrer. Além da mobilização popular, as organizações questionaram judicialmente vários comandos da chamada Reforma Trabalhista, com ênfase na nova disciplina da contribuição sindical.
A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transporte Aquaviário e Aéreo, na Pesca e nos Portos (CONTTMAF) pleiteou a declaração de inconstitucionalidade dos artigos 545, 578, 579, 582, 583, 587 e 602 por incompatibilidade com a Constituição da República de 1988 e violação de princípios ali resguardados por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5794. De acordo com a CONTTMAF, a) essas alterações legislativas só poderiam ser realizadas mediante lei complementar, com rito mais complexo, por se tratar de matéria tributária; b) haveria violação a direitos e garantias dos trabalhadores, cujo direito de assistência jurídica pelos sindicatos restaria comprometido pela carência de recursos das entidades; c) o Estado teria legislado de forma abusiva, ferindo o princípio da proporcionalidade.
Inúmeras outras entidades de classe se socorreram de ações diretas de inconstitucionalidade, totalizando dezessete apensadas à ADI nº 5794, muitas delas figuraram como amicus curiae e reafirmaram os argumentos quanto à inconstitucionalidade da Reforma em suas alterações à contribuição sindical. Em síntese, destacaram a ocorrência de renúncia fiscal sem prévio esboço de impacto orçamentário, aduziram à drástica redução dos recursos sindicais para continuidade de suas atribuições, implicando fechamento de unidades, dispensas em massa e incapacidade de fiscalização do cumprimento de cláusulas pactuadas em negociações coletivas, o que esvaziaria uma de suas principais frentes de articulação em defesa dos trabalhadores. Em sentido contrário, mas igualmente apensada às demais ações, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (ABERT), em Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 55, pugnou pelo reconhecimento da constitucionalidade da norma em suas disposições a respeito da contribuição sindical.
No julgamento da ADI nº 5794, o Relator, ministro Edson Fachin, perpassou breve histórico sobre a construção do modelo sindical brasileiro, do que se ressalta o reconhecimento, de sua manutenção como “opção inequívoca” da Constituição de 1988, modelo esse pautado no tripé “unicidade sindical – representatividade obrigatória – contribuição sindical”. E prossegue: “é preciso reconhecer que a mudança de um desses pilares pode ser desestabilizadora de todo o regime sindical, não sendo recomendável que ocorra de forma isolada sob pena de 'ao tocar apenas em um dos pilares da estrutura sindical, a reforma preserva uma das fontes de fragmentação e impede os sindicatos de buscar formas de organização mais eficazes para defender os direitos dos trabalhadores e resistir à ofensiva patronal'”.
O relator, todavia, não representou o entendimento da maioria dos ministros do STF, que divergiram do voto proferido para deliberar pela constitucionalidade da natureza facultativa da contribuição sindical. O ministro Luiz Fux sustentou a desnecessidade de uma lei complementar para a alteração mencionada, por não vislumbrar disposição tocante a normas gerais em legislação tributária. O ministro Alexandre de Moraes, destacando o número expressivo de sindicatos profissionais e patronais, afirmou não ser razoável que o Estado financie um sistema sindical pouco representativo, asseverando que apenas dois em cada dez trabalhadores são sindicalizados. O ministro Luís Roberto Barroso, por seu turno, apelou para o respeito “às escolhas políticas do Congresso”, afastando a noção de que tal reforma atingiria as regras do “jogo democrático”. Aderindo posição contrária ao relator, também se manifestaram os ministros Marco Aurélio, Gilmar Mendes e Carmen Lúcia.
Anuindo ao entendimento esposado por Fachin, a ministra Rosa Weber reiterou a ideia de que, a despeito de não nutrir simpatia pela contribuição sindical, deve-se compreender a existência de um modelo constitucional do qual não se pode fugir. Para ela, há balizas constitucionais que não podem ser alteradas apenas em parte, sob risco de causar desarmonia ao modelo sindical adotado democraticamente. Ainda em adesão ao voto do relator, pronunciou-se o ministro Dias Toffoli.
O resultado da votação aprofunda a crise vivenciada pelo movimento sindical com a Reforma Trabalhista, que vê restringidas as possibilidades de reversão ao cerceamento de fontes arrecadatórias e comprometida sua missão histórica na defesa da classe trabalhadora. Com a decisão do STF, qualquer tentativa judicial de afastar o caráter facultativo da contribuição será possibilidade remota de sucesso, o que impõe às entidades classistas, que estão neste momento de joelhos, o exercício criativo para prosperar na luta por “sobrevivência”.
A estratégia de discutir a matéria em sede de controle concentrado, perante o pleno do Supremo Tribunal Federal, foi, no mínimo, audaciosa. Isso porque a decisão proferida apresenta características diferenciadas, vinculando a todos, não apenas aqueles envolvidos na qualidade de requerente ou amicus curiae, e revestindo-se de caráter cogente, o que obriga as instâncias inferiores a seguir o entendimento do Supremo quanto à matéria. Considerando as últimas discutíveis manifestações da Corte em temas de natureza trabalhista (mas não apenas), talvez seja o caso de considerar que tenha sido precipitada a propositura de ação de controle concentrado para afastar a alteração legislativa do ordenamento jurídico.
Essa percepção ganha relevo diante de decisões em controle difuso, isto é, pontuais, aplicáveis ao caso em concreto, portanto de efeitos mais restritos, mas crescentes em tribunais trabalhistas pelo País. Destaquem-se as decisões, em caráter liminar, do TRT de Campinas, por meio de sua Seção de Dissídios Coletivos, sobre a necessidade de lei complementar para alteração do caráter obrigatório da contribuição sindical (MS 0005622-91.2018.5.15.0000, MS 0005681-79.2018.5.15.0000, MS 0005660-06.2018.5.15.0000, MS 0005496-41.2018.5.15.0000, MS 0005431-46.2018.5.15.0000, MS 0005491-19.2018.5.15.0000, MS 0005494-71.2018.5.15.0000, MS 0005593-41.2018.5.15.0000) ou do Tribunal Regional da Bahia que, em abril deste ano, confirmou o caráter constitucional e a natureza de tributo da contribuição, considerando inconstitucional a alteração de legislação tributária por lei ordinária, como o é a Lei nº 13.467/2017. Além disso, no próprio Tribunal Superior do Trabalho há decisões favoráveis aos descontos em folha para esse fim, desde que haja aprovação em assembleia da categoria, como se verifica no caso da Convenção Coletiva de Trabalho do Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias – SNEA e da Federação Nacional dos Trabalhadores em Transporte Aéreos – FNTTA, homologadas em fevereiro de 2018.
Essa alternativa para contornar a (quase) impraticável autorização expressa individual dos empregados foi chancelada também pelo Ministério do Trabalho, que emitiu Nota Técnica nº 02/2018/GAB/SRT, na qual informa compreender que “o ordenamento jurídico pátrio, a partir de uma leitura sistemática, permite o entendimento de que a anuência prévia e expressa da categoria a que se referem os dispositivos que cuidam da contribuição sindical pode ser consumada a partir da vontade da categoria estabelecida em assembleia geral, com o devido respeito aos termos estatutários”, fazendo ainda referência ao Enunciado nº 38, formulado pela ANAMATRA na 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho. O referido enunciado dispõe que “a autorização coletiva prévia e expressa para o desconto das contribuições sindical e assistencial, mediante assembleia geral, nos termos do estatuto”, é lícita e obrigatória para toda a categoria. Fortalecer esse caminho, pavimentado pelo apoio de instituições relevantes, como a ANAMATRA e o MTE, implicaria riscos menores, a despeito de inexistir força vinculante em suas orientações.
Aguardamos a publicação do acórdão relativo à ADI 5794 para conhecer o inteiro teor da decisão e avaliar a existência/inexistência de novas possibilidades para que as entidades sindicais possam se reestruturarem.
Contudo, tal decisão já vem possibilitando novas leituras e interpretações jurídicas acerca dos dispositivos legais questionados no Supremo.
O Procurador do trabalho, José Fernando Ruiz Maturana, na promoção de arquivamento do procedimento preparatório nº 000264.2018.15.001/8 - 32 da Procuradoria de Bauru, com esteio na decisão do STF acerca da constitucionalidade da natureza facultativa da contribuição sindical e com fundamento na Lei 13.467/2017 (Lei da Reforma Trabalhista), foi muito além ao interpretar que a decisão da Suprema Corte “confirmou a natureza associativa comum dos sindicatos, que devem sobreviver exclusivamente às custas das contribuições voluntárias dos integrantes da categoria e da prestação de seus serviços sindicais”. Conclui o procurador do trabalho que “os instrumentos coletivos não mais albergam todos os integrantes da categoria, mas apenas àqueles associados à agremiação ou que considerem vantajosos os benefícios previstos no instrumento coletivo de trabalho e aceitem pagar pelos serviços relacionados à sua celebração.” Ou seja, apenas os filiados (e não mais todos os integrantes da categoria) se beneficiariam das vantagens e benefícios conquistados através da negociação coletiva.
No entanto, a previsão constitucional acerca da representação sindical é muito mais abrangente, ao passo que prevê a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas (art. 8º, III da CRFB/88). Isso significa que a associação sindical representa a categoria, seja profissional, seja econômica, logo, a representação sindical açambarca filiados e não filiados. Já as associações comuns têm legitimidade para representar, apenas, seus filiados judicial ou extrajudicialmente (art. 5º XVII c/c XXI da CRFB/88)
Segundo o Prof. Márcio Túlio Viana, em conversa informal sobre o assunto, “a interpretação do procurador do trabalho pode ser questionada, do ponto de vista literal, na medida em que o art. 8º. da Constituição dá ao sindicato o direito-dever de defender os interesses ‘da categoria’ - e não apenas dos associados. Supondo-se que seja possível, com um esforço de argumentação, superar esse obstáculo, teríamos de enfrentar a questão do ponto de vista teleológico ou mesmo político. Ora, de um lado, é possível que aquela interpretação incentive realmente os trabalhadores a se sindicalizarem. De outro lado, porém, muitos trabalhadores temem se sindicalizar, diante das represálias patronais, e por isso ficariam à deriva. Entre as duas consequências, qual seria a preferível? Talvez a primeira, que é exatamente a proposta pelo procurador; mas o fato é que a resposta é complexa, o que talvez signifique que não deveria vir isolada, ou seja, desacompanhada de outras medidas de suporte da ação sindical”.
Assim, por exemplo, querendo se manter a interpretação dada pelo procurador do trabalho, precisaria se repensar na adoção da pluralidade sindical, pois não nos parece razoável que o trabalhador que opte por não se filiar a determinado sindicato -por não ser atuante- deva vir a ser prejudicado com a não extensão das eventuais vantagens negociadas sem ter a possibilidade de escolher de se filiar a outra agremiação que mais o represente, devido a manutenção do princípio da unicidade sindical a despeito da pluralidade sindical.
Sem considerar que a eventual concessão por parte dos empregadores de benefícios poderia ficar prejudicada pelo fato do empregador entender que assim contribuiria para o fortalecimento do sindicato, motivando mais trabalhadores a se sindicalizarem. Prejuízo este que poderia ser reduzido num ambiente de pluralismo sindical.
Ademais importante seria a aprovação de lei complementar que regulamentasse as dispensas arbitrarias e sem justa causa conforme previsto no inciso I do art. 7º da CF e de medidas de repressão das condutas antissindicais. Isso porque, em face da decisão do Supremo, o trabalhador, que antes era obrigado por lei a pagar a contribuição sindical, hoje é obrigado a se manifestar se quiser contribuir, o que permite ao empregador controlar a aproximação voluntária dos trabalhadores com sindicatos e suas respectivas filiações, gerando naqueles trabalhadores que pretendiam se filiarem, medo de serem repreendidos, até mesmo com a perda de emprego.
A articulação junto aos trabalhadores, a difusão dos prejuízos nos meios de comunicação acessíveis, como plataformas virtuais, greves e manifestações outras de maior ou menor impacto na atividade econômica ou na vida política, sobretudo nesses meses que antecedem as eleições presidenciais, são os recursos imediatos à disposição. Mas, como destacado, há caminhos já parcialmente trilhados, em relação aos quais vale perseverar para contornar o processo de asfixia a que os poderes constituídos buscaram submeter os sindicatos. A aprovação dos descontos em assembleias parece, neste momento, a alternativa mais viável, já admitida pelo Poder Judiciário em decisões pontuais, cujo fortalecimento poderia revigorar os esforços das entidades para resistir aos ataques legislativos, sucessivos e incessantes, que têm enfrentado.