No último dia 10, mais um caso de racismo ganhou repercussão nas redes sociais. A advogada Valéria dos Santos foi algemada e retirada a força de uma audiência de conciliação, no 3º Juizado Especial Cível de Duque de Caxias, na baixada fluminense, Rio de Janeiro. A advogada se negou a sair da sala após o encerramento da audiência que movia contra a empresa de telefonia Claro. Isso porque a juíza leiga, Ethel Tavares de Vasconcelos, não permitiu que Valéria tivesse acesso a defesa da ré, necessária para a formulação do documento de contestação do processo, já que não houve acordo entre as partes.
Os chamados “juízes leigos” atuam em juizados especiais, seguindo a Lei dos Juizados Especiais (Lei n. 9.099/1995), que determina que tais profissionais, concursados, são "auxiliares da Justiça, recrutados entre advogados com mais de cinco anos de experiência, que não podem exercer a advocacia perante os juizados enquanto permanecerem na função". Dentre as funções que assumem está a competência para conciliação, julgamento e execução de causas de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mas não precisam ser togados (ou de Direito). Os juízes leigos passam por um curso ofertado pelo Tribunal onde atuarão, que deve ter a carga horária mínima de 40 horas, obedecendo o conteúdo programático também previsto na resolução do Tribunal.
Ao ser impedida de ter acesso à documentação, Valéria pediu a presença do Delegado da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), já que o caso claramente violava seus direitos como advogada e os de sua cliente. Afirmou ainda que só deixaria a sala na presença do Delegado. A juíza, por sua vez, continuou discutindo e ameaçou chamar a polícia para retirar a advogada. Em um dos vídeos que circulou nas redes sociais é possível ver Valéria de pé, discutindo com a juíza e um policial: “Eu estou calma! Eu estou calmíssima! Agora, eu estou indignada de vocês, vocês - e essa senhora também - como representantes do Estado, 'atropelar' a lei. Eu tenho direito de ler a contestação e impugnar os pontos da contestação do réu. Isso está na Lei”, protesta a advogada. O policial respondeu, afirmando: “a única coisa que eu vou confirmar aqui é se a senhora vai ter que sair ou não. Se a senhora tiver que sair, a senhora vai sair!”. A discussão continuou e outro vídeo já mostra a advogada no chão, algemada e sendo arrastada para o corredor do Juizado.
“Eu estou trabalhando! Eu quero trabalhar! Eu tenho direito de trabalhar! É meu direito como mulher, como negra! Eu quero trabalhar!”, falava Valéria enquanto os policiais a arrastavam. A advogada foi levada ainda algemada para a Delegacia de Duque de Caxias, e só foi liberada e teve as algemas retiradas após ordem do Delegado da OAB.
Racismo institucionalizado
Em entrevista, Valéria relata que a magistrada teve várias condutas racistas durante a audiência, como ao jogar a credencial da OAB na direção da advogada, após o encerramento do caso. O que, à primeira vista, poderia passar como um “caso isolado”, é na verdade o reflexo prático do desprezo que o judiciário tem pelo povo negro, sempre punido com mais firmeza. Valéria também pontuou que, por ela ser negra, é comum ser menosprezada por magistrados que a recebem. “Alguns juízes, desembargadores, quando a gente entra na sala, eles não nos veem como advogados. Eu tento abstrair porque preciso trabalhar, ignoro. Neste dia, a juíza perguntou se eu e a minha cliente éramos irmãs porque nós duas éramos negras”, diz.
Não é incomum que o trabalho de um profissional negro, mesmo qualificado, seja menosprezado até na sua área de atuação. Sobram relatos de pessoas que têm o trabalho contestado apenas pela cor da pele. Com Valéria, o caso foi ainda pior: não bastando ter sido impedida de exercer o seu direito profissional e de defender o direito de sua cliente, foi presa arbitrariamente pela Polícia dentro de uma audiência, o que é proibido por Lei. Vemos cada vez mais a face racista dos aparatos institucionais. O judiciário é um dos órgãos que mais ajuda a perpetuar o racismo arraigado socialmente. Não é coincidência que o aparelho repressivo do Estado atue mais energicamente quando se trata de negros, independentemente de onde eles se encontrem. Não importa se é nas periferias, nos centros das cidades ou dentro de um Tribunal, as ações repressivas têm alvo certo, baseado na cor da pele para distinguir o “bom” do “mau” cidadão.
Contra todo o tipo de opressão
O caso de Valéria dos Santos apenas nos mostra que mesmo que o negro ascenda socialmente, estude, se forme em um curso superior e consiga uma posição social de relevância (tudo o que manda a ordem capitalista), a cor da sua pele ainda fala mais forte quando o assunto é repressão. Sem falar na diferença salarial: uma pessoa negra recebe, em média, um salário 47% menor do que uma pessoa branca que exerça a mesma função, com uma discrepância ainda maior para mulheres negras.
Além do mais, Valéria é uma exceção à regra. Embora componham 54% da população brasileira, os negros são apenas 34% dentre a população estudantil. Quando os dados são jogados para a idade escolar no ensino superior, eles se tornam ainda mais alarmantes: somente 12,8% dos negros e pardos, com idade entre 18 e 24 anos, são estudantes de ensino superior. Isso escancara a desigualdade de condições entre negros e brancos no sistema capitalista, quebrando com a falácia da meritocracia. Como se falar em “meritocracia” se os negros, que compõem a maior parte da parcela mais pobre da sociedade, têm que trabalhar durante a idade escolar, seja por necessidade ou para bancar os próprios estudos? Ou seja, não podem se dedicar integralmente aos estudos. Ou ainda, como falar de igualdade de condições se a base do ensino básico para essa população pobre é infinitamente pior? Tendo muitas vezes que se deslocar a pé, durante horas, para conseguir ter acesso à escola.
O sistema capitalista e seus órgãos de controle apenas servem para oprimir a população negra e proletária. Dados recentes do Banco Mundial exemplificam tal política. De acordo com o levantamento “Afrodescendentes na América Latina: Rumo à Estrutura de Inclusão”, em comparação a brancos e pardos, os negros têm uma propensão 2,5 vezes maior a viver em pobreza crônica.
Embora a questão negra tenha suas particularidades, devido ao racismo sistêmico do capitalismo, isso ocorre porque os trabalhadores recebem apenas migalhas da lógica imperialista para depois, sempre no período da próxima crise, verem seus direitos duramente conquistados sendo retirados em larga escala. Apenas com a consciência da população enquanto classe, poderemos destruir a base material que é a grande causa da opressão, não só contra os negros, mas toda a classe trabalhadora mundial.