Desde o período escravocrata surgiram várias revoltas de negros escravizados, contrários à exploração, violência sofrida e preconceitos. Dentre elas, a Revolta dos Malês foi considerada uma das mais importantes. Ocorrida no início do séc. XIX, tratou-se de uma rebelião política pelo respeito à liberdade cultural, contra a imposição do catolicismo e contra a escravidão.
O termo “Malê” significa, no hauçá málami, “professor”, “senhor”, e do ioruba emale, “muçulmanos”. No Brasil, era usado para nomear os negros muçulmanos que sabiam ler e escrever em árabe. Muitas vezes esses escravizados eram mais instruídos do que os seus senhores. Eram ativos e não submissos, apesar da condição de escravos.
Os Malês eram formados por escravos africanos e libertos conhecidos como "negros de ganho". Eram escravizados que tinham mais liberdade do que os da fazenda, pois podiam circular pela cidade. Mesmo assim, sofriam discriminações por serem negros e seguidores do islamismo. Eles também exerciam atividades livres, como pequenos comerciantes, carpinteiros, artesãos e alfaiates. E com esses ganhos, economizavam para pagar sua alforria.
Contexto histórico
A Revolta dos Malês surge pela insatisfação com o sistema político e econômico da escravidão, onde não havia sequer liberdade religiosa, uma vez que os escravizados eram obrigados a participar dos cultos católicos. Foi também uma revolta pelo fim do trabalho escravo, das humilhações, torturas, violências físicas e sexuais.
De acordo com as fontes históricas sobre o tráfico de escravos, um grupo de escravizados, que variava entre 600 e 1500 pessoas, através da experiência de combates que tiveram na África e com o intuito de se opor às práticas impostas pelo sistema colonial, se organizaram para libertar os escravos, acabar com o catolicismo, confiscar os bens dos brancos e mulatos tidos como traidores e implantar uma república islâmica.
A data escolhida pelos líderes para iniciar a Revolta foi o dia 25 de janeiro, que representava o fim do período mais importante para os muçulmanos, conhecido como "Ramadã" (período de preces e jejuns). O número de negros escravizada em Salvador, no período da Revolta, era de aproximadamente 27.500, ou seja, correspondente a 42% da população local.
O plano era tomar pontos estratégicos – alguns negros sairiam do bairro de Salvador e se ajuntariam a outros Malês vindos de outras regiões da cidade, na intenção de invadir os engenhos de açúcar, libertar os escravizados e controlar o governo da capital baiana. Com isso, arrecadaram dinheiro e compraram armas para o combate. Esse plano foi todo feito em Árabe, pois os senhores não dominavam a língua.
Luiza Mahin: mulher de luta
Uma das principais lideranças dos Malês foi Luiza Mahin, que nasceu por volta de 1812, em Daomé (Benin), onde situava um dos portos de tráfico negreiro de mais intenso fluxo entre o séc. XVI e XIX. Segundo historiadores, na África, Luiza Mahin era uma princesa. No Brasil, era uma escrava alforriada, que morava no Solar do Gravatá, onde hoje fica a casa de Angola, e trabalhava como ganhadeira, ou seja, vendedora de quitutes no centro de Salvador.
Por ser uma mulher inteligente e rebelde, através de seu trabalho de quituteira, participou das principais revoltas acontecidas em Salvador, no início do séc. XIX. Com a desculpa de comprar os quitutes, enviava mensagens em árabe para os meninos negros que compravam seus doces. Foi dessa forma que ela participou da Revolta dos Malês.
Luiza, por ser negra livre, era da nação nagô, pagã e se recusava ao batismo e as doutrinas cristãs. Em 1830, da sua relação com um homem branco, concebeu um filho: o poeta e abolicionista Luís Gama. Quando descoberta foi perseguida e fugiu para o Rio de Janeiro, onde continuou sua luta pela liberdade de seu povo, até ser presa e desaparecer, em 1838. Embora não haja documentos, existem especulações que ela teria sido deportada para Angola.
Em suas bibliografias, Luís Gama relata que Luiza Mahin deu a luz a mais um filho, cujo destino é desconhecido. O próprio poeta tentou procurar mais informações a respeito de sua mãe, sem obter nenhum sucesso. Luís, apesar da pouca convivência com a mãe, a descreveu da seguinte forma: "Sou filho natural de negra africana, livre, da nação nagô, de nome Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo, a doutrina cristã. Minha mãe era baixa, magra, bonita, a cor de um preto retinto sem lustro, os dentes eram alvíssimos, como a neve. Altiva, generosa, sofrida e vingativa. Era quitandeira e laboriosa".
Fim da Revolta
O plano da Revolta dos Malês foi denunciado para um juiz de paz, dando então a possibilidade da polícia, juntamente com a população branca que estava apreensiva com o fato, armarem uma emboscada na região da Água dos Meninos. Graças a esta traição, ali ocorreu a última batalha, onde os soldados e demais órgãos repressivos estavam “armados até os dentes” e preparados para o enfrentamento. Uma vez que os escravos possuíam armas cortantes como espadas, lanças, facas e porretes e os policiais com armas de fogo, dezenas de revoltosos foram assassinados. O resultado da batalha foi a morte de 70 negros e sete oficiais. Cerca de 200 escravos foram presos e julgados, com penas variadas que iam desde a deportação para África, açoites e trabalhos forçados, até a pena de morte para os líderes.
Apesar da derrota dos Malês, esse movimento provocou um enorme receio à sociedade, que passou a temer outras novas rebeliões que pudessem ameaçar os mandos e privilégios instituídos pelo regime. Assim, para evitar que ocorressem outros fatos parecidos, o governo local decretou leis proibindo os negros muçulmanos de circularem no período da noite, como também de praticarem o islamismo.
Porém, o medo que essa revolta gerou nas elites, em conjunto com outras experiências, como a Revolução Haitiana, o quilombo dos Palmares e outras rebeliões e revoltas escravas, levou, no fim, ao processo de abolição da escravidão. Como ensina nosso passado escravista, é somente através da luta firme e árdua que nos libertaremos do sistema que nos oprime.