Flávio de Carvalho (1899-1973) foi um dos artistas mais completo do modernismo brasileiro. Pintor, desenhista, cenógrafo, engenheiro, escritor, dramaturgo e diretor teatral. Foi um grande agitador cultural e sua figura anárquica, com experiências que propunham uma radicalidade estética, causaram grande reboliço nas estruturas da sociedade paulistana de sua época.
Com seu espírito inquieto e provocador, ao realizar sua Experiência nº 2, alguns o consideram como precursor da performance no Brasil. Nesta polêmica performance, Flávio caminhava numa procissão de Corpus Christi, em sentido contrário, ostentando um boné verde de veludo na cabeça – uma atitude considerada profana para a época. O artista foi perseguido pela multidão, que aos gritos pedia seu linchamento e morte. O caso teve seu fim na delegacia. O artista revelou que seu intuito foi fazer um “estudo psicológico das multidões”, buscando testar o grau de civilidade e tolerância de uma sociedade. Em seu depoimento na delegacia, Flávio relatou que seu objetivo era testar a “capacidade agressiva de uma massa religiosa à resistência das forças das leis civis, ou determinar se a força da crença é maior do que a força da lei e do respeito à vida humana”.
Os aspectos que permeiam essa experiência/intervenção estética são os mesmos que irão permear suas produções que se seguiram nos anos de 1930: a crítica aos princípios dogmáticos impostos pelo cristianismo e a persistência da visão de mundo cristão na sociedade da época – herança da colonização europeia.
Em 1933, Flávio de Carvalho criou, no CAM (Clube de Arte Moderna), o Teatro da Experiência, que funcionou como um laboratório de pesquisas e, como o próprio nome diz, experiências com caráter revolucionário e com o propósito de sacudir o meio artístico brasileiro.
O primeiro espetáculo vinculado ao Teatro da Experiência foi “Bailado do Deus Morto”, um teatro-dança, marcado por uma forte plasticidade no espaço cênico. A peça discorre, entre coreografias e ações, sobre a celebração de um ritual de despedida e libertação – celebração da morte de Deus que pressupõe a libertação de seu criador: o homem. Apresenta um texto de natureza profana (novamente uma provocação/destruição de valores cristãos e burgueses) e com inovações estéticas, uma demolição das estruturas do teatro vigente. Mas o sucesso das apresentações não barrou a ação autoritária do Estado, representante dos setores conservadores e indignados da sociedade paulistana. O Teatro da Experiência foi fechado e seu funcionamento proibido.
Em outra ação performática, na década de 50, a “Experiência nº 3”, Flávio forçou as pessoas a lidarem com o não-convencional. Com o propósito de conceber um tipo de roupa mais adequado ao clima de um país tropical, o artista desfilou pelas ruas do centro de São Paulo vestindo blusa, saiote e meia-arrastão, uma composição de peças que intitulou “New Look Tropical”.
Em 1968, quando a Ditadura Militar, imposta quatro anos antes, ameaçava ganhar seu contorno mais autoritário, Flavio realizou o “Monumento a Federico Garcia Lorca”, o grande poeta e dramaturgo espanhol, morto pelas forças franquistas no começo da Guerra Civil Espanhola por ser socialista e homossexual. A obra era uma homenagem ao poeta, encomendada pelo Centro Democrático Espanhol, associação que abrigava velhos republicanos exilados no Brasil.
A inauguração do monumento, no mês de outubro, na Praça das Guianas, em São Paulo, tornou-se um evento de repercussão internacional, com a presença de artistas e intelectuais, entre eles o irmão de Lorca, Paco, e o poeta chileno Pablo Neruda. Para complementar a homenagem, ocorreu uma exposição na Biblioteca Mario de Andrade e um espetáculo no Teatro Municipal de São Paulo, que contou com a participação de Chico Buarque, Geraldo Vandré, Sérgio Cardoso, entre outros.
Passados dois meses, foi baixado o Ato Institucional nº 5 pelo governo militar, que representou a face mais repressora da Ditadura. Em julho de 1969, um grupo paramilitar, o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), atacou e destruiu a obra, deixando, entre seus destroços, folhetos que denunciavam o motivo de sua destruição: “comunista e homossexual”, em referência à Lorca. Os restos da escultura foram parar num depósito da prefeitura da cidade de São Paulo. Em 1971, Flávio a restaurou e instalou no prédio da Bienal, no Ibirapuera. Mas o embaixador da Espanha, presente na Bienal, franquista fanático, protestou contra a presença da homenagem ao “comunista”, assassinado pelo governo que ele representava e, novamente, o monumento foi recolhido ao depósito pela prefeitura, ficando esquecido até o final dos anos de 1970, quando um grupo de estudantes da ECA (Escola de Comunicação e Artes) e da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo), ambas da USP, decidiu devolver a escultura à cidade.
A peça foi restaurada na FAU, pelos estudantes, e levada para o vão livre do Museu de Arte de São Paulo (MASP), em uma ação provocativa no dia em que ocorria uma cerimônia comemorativa do aniversário da cidade. A afronta funcionou e a cidade teve que acolher novamente a obra de Flávio de Carvalho. Dois dias depois, o “Monumento a Federico Garcia Lorca” foi devolvido à sua praça de origem, onde se encontra até os dias de hoje.
A arte, as vanguardas e a volta da censura
Flavio de Carvalho, com sua atuação vanguardista e multidisciplinar, é um artista que muito colabora com a reflexão sobre o papel da arte e do artista na sociedade brasileira nos dias atuais.
Em setembro de 2017, o encerramento precoce da mostra Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, no museu do Santander, em Porto Alegre, ocorreu após protestos de grupos conservadores da sociedade, que, indignados, acusavam a exposição de fazer apologia à pedofilia, zoofilia e ofensas à religião cristã e aos bons costumes burgueses. Depois de 90 anos da “Experiência nº 2”, de Flavio de Carvalho, começamos a vivenciar novamente experiências de protestos e críticas reacionárias e autoritárias sobre manifestações artísticas. A exposição atual explorava temáticas relevantes para se pensar a realidade: a diversidade de expressão de gênero e, novamente, críticas a princípios dogmáticos, de valores e moral relativos à visão cristã de mundo. As manifestações contrárias às obras foram impulsionadas nas redes sociais por integrantes do Movimento Brasil Livre (MBL). Também houve constrangimentos presenciais dirigidos aos visitantes. Venceu a censura e o Santander Cultural cancelou a exposição antes do previsto. O caso gerou um grande debate e revelou a crescente polarização da sociedade brasileira.
Se analisarmos esse episódio a partir do objetivo proposto, décadas atrás, por Flávio de Carvalho em suas experiências vanguardistas, de fazer um “estudo psicológico das multidões”, podemos constatar a dimensão sociopolítica da arte contemporânea que, ao espelhar questões inerentes à realidade cotidiana, provoca e denuncia a moral hipócrita da sociedade burguesa cristã: xenofóbica, misógina, sexista, machista e intolerante. A censura recente também escancara o quanto o moralismo pequeno-burguês serve de instrumento de alienação de um segmento social em relação a sua história, que caminha a passos largos em direção a um novo Estado de exceção.
Os factoides decorrentes da mostra Queermuseu expõem o mecanismo da atual crise econômica: o fortalecimento da extrema-direita como solução da burguesia para reprimir a população e ameaçar, a cada dia mais, as liberdades democráticas, inclusive a de expressão. Corremos o risco de ver uma nova e mais violenta ditadura voltar ao poder. Em tempo: o Monumento a Garcia Lorca pode estar, novamente, com os seus dias contados!